XIII - Máscaras funerárias




- Como havemos de despir-nos de nós, do que se acrescenta a tudo?

- (...) 

- Pedra sobre pedra. Passo sobre passo. Tempo sobre tempo. Carne sobre carne. Sonho sobre sonho. Como extrair tantas camadas, limpar tantos estratos e tantos pequenos eus acumulados, António? Como chegar a essa verdade, à verdade total que nos habita? O inconsciente é como uma central nuclear. Temos de entrar armados - e arriscamos a vida. O pensamento estoira como um infinito. E o que se pode sentir do que há para sentir é sempre como uma franja, uma franja tremenda a partir da qual todo o corpo se desagrega - e até a alma nos foge pelo fim dos cabelos e pelas pontas dos pés. Onde iremos nós arranjar os olhos, a visão, a lucidez, as forças e a liberdade com que olhar exactamente nas coisas e em nós o que nelas e em nós haja de exacto ou rigoroso?

- Continua, Maria do Mar.

- Inventamos qualquer coisa para viver ou para continuar a viver, tal como uma criança que inventa um jogo, para passar o tempo. Pensamos: «Vou fazer isto!...» Mas o entusiasmo e a cegueira são de tal ordem que em breve nos esquecemos de que «isto» foi apenas uma invenção nossa. Podia ser outra coisa, em vez dessa. Mas a nossa necessidade de sonhos e a nossa fé no futuro encarregam-se de apagar o que ali havia de arbitrário, de contingente. Agarramo-nos a ideias e valores com a mesma fidelidade e paixão com que nos agarramos à vida, como se as três coisas fossem, afinal, indissociáveis, ou não é? Mas eu coloco uma máscara, António, e o disfarce desloca-me. É por isso que estou a esculpir estas máscaras, para dançar. São inspiradas em máscaras funerárias. Há muitas. Há tantas máscaras... E não é só fazer como um ébrio carnavalesco que faz tudo o que realmente quer porque já é outro e assim já pode desiludir-se mais livremente a si próprio, ao seu público, à sua família e aos seus amores. Não é só dar a si próprio a liberdade de um mascarado, de um anónimo ou de um infiltrado que, fugazmente e à partida, se dê o perdão de um efémero de festa ou de loucura permitida. É muito mais do que isso - é uma ferramenta de exactidão progressiva. Claudicante, condenada - mas inabalável. Uma arma de resistência. E mais ainda. É como um arsenal de exploração. Uma cápsula que permita a navegação no inferno. Um pulmão para as zonas sem ar. Uma asa para o limite da atmosfera ou um blindado que suporte a rarefacção ou a intensidade extremas. Não é verdade que eu podia perfeitamente ser um homem, um rei, um mendigo ou um cavaleiro medieval? São meras circunstâncias históricas. Podia perfeitamente ser aquele louco desabrigado e vagabundo que traz sempre a sua garrafa na gabardina, desgrenhado. Podia, por alguma razão, ter perdido o contacto com a minha dignidade e até matar. Ser toda uma humanidade vulgar... é-me perfeitamente natural. Só a extrema invulgaridade, como a de um Hitler, ou a de um psicopata, se me torna estranhamente difícil, mas não inacessível. É muito mais simples ser um desses cobardes que fizeram parte das suas máquinas infernais. Numa multitude de aspectos, sou muito mais homem que mulher. Talvez comecemos todos por ser homens, por causa de um vício de linguagem, ou pior, por causa de uma tremenda e trágica rede de poderes e de forças. Forças físicas, em primeiro lugar. Acontecimentos físicos, inultrapassáveis, como o de carregar ou não carregar uma criança dentro do ventre. Como poder ser violado. Segurar numa pedra ou derrubar, com um machado, uma grande árvore. Vejo-me muito mais naturalmente como um príncipe no topo do seu cavalo do que como princesa no alto da torre. Ser mulher é um acontecimento intermitente. É como a luz de um farol que aparece a curtos intervalos na escuridão, como o apito da sirene no meio do nevoeiro.  Uma nostalgia timbrada de dor. Um grito infinito. Mas também podia perfeitamente ser uma flor, um lago, uma pedra, uma estepe ou uma borboleta, e isto, sim, isto com ainda maior naturalidade, não concordas?... 

A Maria do Mar podia falar durante horas a fio enquanto trabalhava com as mãos, esculpindo os moldes. Todos os moldes eram rostos - os rostos com que iria dançar. Serviam-lhe de modelos as máscaras funerárias e algumas máscaras feitas a partir de mortos, como as da «Desconhecida do Sena». A Maria do Mar pediu-me também que fizesse um molde do seu rosto, e transformou-o em máscara. Mas aquela rapariga que morrera afogada no Sena e cujo corpo ninguém viera reclamar, cuja identidade ninguém descobrira, em 1880, como pudera fixar no rosto uma tal alegria, na hora da sua morte? Talvez a história fosse inteiramente falsa, de uma ponta à outra. Porque se suicidara? Como é que ninguém a conhecia - e mais: como é que ninguém deu pela sua falta, uma menina que era a própria encarnação viva da graça e da santidade? Era hábito fazer-se dos mortos não identificados uma máscara de morte, para que os familiares pudessem vir a reconhecê-los, quando os procurassem? Não é estranho que Camus tenha encontrado nesta máscara reflexos da Mona Lisa, exactamente do mesmo modo que outros também os encontraram na máscara funerária de Agamémnon, ao ponto de lhe chamarem «a primeira Mona Lisa»? Dou por mim inteiramente absorto na contemplação destes rostos, pedindo-lhes, com a minha insistência, que me desvelem o fundo da sua alma, que me mostrem sem sombras os últimos segundos da sua existência na terra. Tanto que me dizem os músculos destas faces em que não parece haver apenas paz, mas uma mistura de sentimentos mais fina, mais rica, mais contraditória e mais real, como a que se opera em vida... mas é em vão que me demoro e desejo tanto que abram de novo os olhos só para que eu leia neles o que eles viram. Pois não é impossível que seja na hora da nossa morte que dêmos finalmente de caras com Deus.

Dom Sigismundo




- E quanto a Dom Sigismundo - matou ou não matou Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão, no ano de 1149?

- Matou ou não matou - eis a questão.

- Matou?

- Pois claro que matou!... Com um punhal.

- Mas diz-se que não matou.

- O mundo em geral gosta de se escrever ao contrário.

- E porquê?

- Matou-a no alto da torre, na câmara onde se encontravam secretamente.

- Secretamente? Mas Dom Sigismundo não era o marido de Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão, no ano de 1149?

- Não. Dom Sigismundo tinha sido o primeiro amante de Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão, no ano de 1149.

- Tudo no ano de 1149?

- Tudo no ano de 1149.

- Mas se era o amante, porque a matou?

- Porque ela arranjou um segundo amante.

- Mas a que propósito?

- Dom Sigismundo achou que podia matá-la, incriminando o marido.

- Não... A que propósito Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão... era assim tão leviana?

- Não era propriamente leviana... Os casamentos de então assemelhavam-se mais a contratos de compra e venda do que propriamente a relações de amor. Dona Constança rompera com Dom Sigismundo, que a desiludira de muitos e variados modos, e iniciara correspondência com um jovem cavaleiro que lhe dedicava canções de amor.

- Só por cartas, esse amor?

- Só por cartas.

- E mesmo assim despertou a ferocidade de Dom Sigismundo?

- Ah! Claro!

- Os homens!

- Não! A modelo Mayka Kukucova também alvejou o milionário Andrew Bush perto de Estepona quando este apareceu com a sua nova namorada russa de vinte e três anos, Maria Korotaeva!

- E como é que Dom Sigismundo matou Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão, no ano de 1149?

- Usando o punhal e a capa do marido.

- Ardiloso.

- Montou a cavalo, lançou uma corda e içou-se ao alto da torre.

- Destemido.

- Mas levou um dos seus mais faustosos chapéus, e deixou cair uma pena.

- Se era para trepar à torre como um intruso, porque levou a capa?

- Com a capa ninguém deu por ele a cavalo (pensaram os serviçais que se tratava do verdadeiro Duque) - e além disso Dom Sigismundo tinha a esperança de surpreender os amantes.

- Não imaginava que fossem tão castos e que se tivessem ficado apenas por cartas?

- Claro que não. As canções eram demasiado insinuantes, a seu ver.

- E apenas por uma pena, foi condenado?

- Isso mesmo.

- Mas ao jovem cavaleiro, nada lhe aconteceu.

- Nada.

- Por uma pena.

- Por uma pena.

- E o que se seguiu?

- Foi enforcado.

- Mas não poderá o Duque ter roubado o faustoso chapéu de Dom Sigismundo, ao invés de Dom Sigismundo ter roubado a capa do Duque?

- Uma bela capa negra, comprida e elegante.

- E então?

- Eis uma bela pergunta!

- De um só golpe, o Duque matou os dois amantes, e um deles por interposta pessoa.

- Sinistro, mas realmente não sabemos.

- De uma penada!

- Pois, pois...

- E então, sobre Dom Sigismundo - é tudo?

- É tudo.

- Não tem quase lógica nenhuma.

- Nenhuma, mesmo.

- Então as melhoras.

- Espero melhorar.

- Beijinhos à tia.

- Beijinhos.


XII - O excesso


Enquanto construíamos os adereços para colocar sobre o corpo da Maria do Mar, conversávamos, prolongando os nossos diálogos, quem sabe, até ao infinito.

- Para quê fazer isto, Maria? Não achas que estarás a repetir outras coisas?

Usávamos arames, caricas, fitas, penachos, tiras de tecido , missangas, contas de vidro, ráfia, tintas fortes e diversos cintos e braceletes - segundo os desenhos da Maria do Mar. 

- Para quê?... Perguntas-me para quê?...

- Pergunto-te para quê.

- Diz-me, porque hei-de eu preocupar-me com isso?

- Para quê, pergunto, fazer uma coisa - se essa coisa já existe?

- António, e as multiplicidades? E as nuvens? Só pode haver um malmequer na pradaria? Um malmequer de cada vez na pradaria, porque tudo o resto está a mais e não tem sentido? As estrelas chegam uma por uma ao céu. Só existe um casal de cada espécie, na Arca de Noé. Mas isto nem sequer existe ainda - nada disto ainda existe. Se nada fizeres, que diferença fará morrer ou não morrer?

- O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Como é que saltas dos malmequeres para a inexistência das coisas que estão por inventar e daí para a diferença entre a vida e a morte?

- Queres que eu reflicta sobre a originalidade desta produção, certo? Como se isso fosse o principal critério de valor - a unicidade. Só um malmequer. Só uma árvore no meio do campo. Só um elemento de cada espécie, o suficiente para fazer a diferença. A questão é que não me interessa que isto exista ou não exista, mesmo que por acaso não exista. Esse não é o critério. Sempre, numa dada altura, todos tendem a fazer as mesmas coisas. Será sempre uma questão. O pensamento pensa, ou é alguém que pensa? A arte faz-se, ou é alguém que a faz? Criamos um movimento, ou somos movidos por ele? A única coisa que me interessa é a diferença entre a vida e a morte. De certo modo, é bastante mais básico... Falas como se a originalidade pudesse ser um projecto, uma intenção... Como se um homem não estivesse apenas, como todos os outros homens, numa encruzilhada... A meio de um caminho que se faz com ele, mas não por ele... Como se não houvesse esse ritmo supra-humano da matéria, do cosmos, de outras forças... Como se uma poderosa vida não-orgânica não nos varresse a alma a toda a hora... (Essa sim, porventura original...) Que queres, António? Não tenho qualquer aspiração à originalidade.

Cada adereço era uma extensão rítmica do corpo. A saia de fitas que se abriria na dança, como um guarda-sol. Em vários pontos do corpo, os penachos pendentes transformavam-se em corolas abertas de flores, chapéus que giravam. As braceletes que se colocavam nos tornozelos, nos pulsos, nos antebraços, nos joelhos. Delas poderiam pender fitas com contas que se abririam como discos voadores ao ritmo dos passos, chocalhando. Um movimento dos braços não seria apenas um movimento, mas um instrumento de percussão. Por todo o lado, volantes. Havia uma ebriedade na construção destes adereços, um excesso surreal. Coroa sobre coroa. Cinto sobre cinto. Bracelete sobre bracelete. Guizos. Chocalhos. Extensões de membros. Contas. Missangas. Pequenos varões articulados como chapéus de chuva.

- Já pensaste, pelo contrário, que escapar à originalidade talvez nem sequer seja possível, muito menos viável?


- Percebo-te. Em certa medida, concordo que a originalidade nunca poderá ser uma intenção, um projecto. É óbvio... soará sempre artificial, a pastiche, a número de circo. Mas não concordo com essa abolição do singular, do génio interior, do demónio vivo.

- Exactidão. Só exactidão. To thine own self be true. Mas é mais do que uma questão de mera verdade - produzir exactamente, fazer uma produção exacta. É mais difícil do que qualquer virtuosismo técnico. Talvez porque implique uma ética do rigor. Rigor da percepção que se desfaz continuamente, desfocando, focando, raspando, contornando, contorcendo, mudando sempre de posição, de escala, de densidade, de gravidade. Rigor que obriga a parar o fluxo do pensamento e a cortá-lo como quem usa uma lâmina, sem piedade, de um golpe. O rigor é muito difícil - quase impossível... Talvez seja humanamente impossível.

Víamos durante horas tudo o que encontrávamos sobre danças tribais. As mulheres Zulu. Os Yoruba. Os Masai. Os Nguni. Os Ga. Os Xhosa...  A Maria do Mar podia pegar depois numa coisa dos Buraka Som Sistema, uma coisa de certo modo trivial, como «We stand up all night», e transformar aquele ritmo em transe. Os batimentos dos pés, os ritmos contínuos e diferentes que arrastavam sucessivamente o corpo, como as chuvas arrastam as terras, como um abalo faz oscilar todo o solo, o ritmo galgava a consciência como uma maré cheia, como um ecstazy, como um álcool. Um membro que se agitava já não era parte do corpo, mas uma estepe varrida por um vento, uma corrente de oceano, arrastando o fundo do mundo. As fitas que se abriam em discos, no topo da cabeça, nos tornozelos, nos pulsos, eram ventoínhas, volantes, tapetes, vassouras, balões mágicos de uma cegueira por alcançar. O corpo exausto, o corpo ardente, quente, húmido da cabeça aos pés, evaporado, continuava leve na sua percussão aérea para além dos joelhos e das pernas, sobrevoando o ritmo, como uma chama surda, imprevisível e incandescente. Até ao limite absoluto, até à inconsciência, ou até à queda - era preciso dançar. Mas não era o corpo que dançava. Sou testemunha. Era o ritmo que atravessava o corpo, pegando-lhe fogo de lés a lés.

- And it must follow, as the night the day, thou canst not be false to any man.

Fazíamos furos com um estilete em cada carica, de modo a fazê-las passar por vários arames que depois seriam presos em braceletes ao nível dos tornozelos e dos pulsos, numa estrutura radial.

- Continuo, Maria do Mar, a pensar que isto é tudo um pouco selvagem, tudo o contrário dessoutro projecto de frugalidade, que tanto amas.

- O excesso tem de ir por algum lado, António.


XI - Um Deus com olhos



- Danças, se não podes falar com Deus?

- Não concordas que é uma boa alternativa?

A Maria do Mar lavava a loiça em água quente, enquanto eu cortava o feijão verde que tínhamos acabado de colher na horta.

Tanto o som da água quente a correr como o perfume do feijão verde cortado nos davam uma sensação de paz, de abundância, de plenitude, de eternidade.

- É evidente que não estás a dançar para nós. Não estás a dançar para ninguém, aliás. Mas acreditas que Deus te vê quando danças, Maria?

- Se Deus me vê!... - exclama ela com um riso claro e solto, ao mesmo tempo que se volta para trás esquecendo-se da loiça, da água corrente, da espuma, de tudo.

- Como és humano, António!

- Estou apenas a fazer um paralelo, Maria. Se os que falam acreditam que são ouvidos, porque é que os que dançam não acreditam que são vistos?

- Há mais coisas na minha alma do que aquelas que cabem na tua imaginação, meu querido amigo...

- Então?...

Estávamos ali entre os azulejinhos brilhantes da grande cozinha, os azulejos pequenos, azuis e brancos, e nós, as duas incógnitas, as duas figuras ténues no fundo quadriculado, ardente e brilhante.

- Não posso dizê-lo... Se Deus me vê... Que humano que é ver!... Um Deus com olhos, um Deus todo olhos, quem sabe?... Olhos por todo o lado, até por baixo dos pés!... Mas agora este Deus também tem pés!... Tem costas, tem frente e trás!... E talvez uma barriga, um sexo e um cu... Ou vários sexos... Quantos dedos? Quantas mãos? Quantas bocas? Quantos cérebros? Quantas espinhas no centro dos mil corpos?... Que cabelos por todo o lado, como florestas, como estepes cobertas de tojo, de cactos e de flores? Que caudas de leão, que asas, que bicos de águias? Que olhos penetrantes de coruja demasiado perspicaz e supra-humana? Queres que enlouqueça aqui mesmo, só de imaginar um Deus que vê?

- Maria do Mar, acho melhor concentrares-te na loiça, enquanto eu acabo o feijão verde...

- De qualquer modo... - continuou a Maria, colocando as mãos na água - ...talvez seja absurdo, porque não imagino nada... - não sou capaz... - mas é para Ele que eu danço.




Hermes derrubando Argos Panoptes, século V a.C.




X - Danças




Montar um ovo de gaze no andar superior da casa de Maria do Mar foi das coisas mais tremendas que realizámos.

Primeiro, a estrutura, com finas calhas de alumínio e arame.

Custou-nos várias semanas, imenso dinheiro - e uma enorme frustração.

Nenhum de nós tem espírito de engenheiro, a todos falta uma espécie de pragmatismo elementar. Porque a estrutura do ovo era uma coisa enorme, altíssima, mas tinha de ter um espaço bastante livre de mais ou menos um metro a partir da altura da cintura de Maria do Mar. Porquê? Será fácil perceber porquê.

Depois foi preciso gaze. Metros e metros e metros de gaze. Nisto eu e a Maria do Mar não podíamos estar sozinhos. A Francisca e o Artur B. tinham de nos ajudar, como dois dançarinos invisíveis mas fulcrais, perfeitamente articulados com o restante movimento da cena.

Na verdade, ambos constituíam o duplo par de Maria do Mar, mas um par não amigável, implacável. Eram como a influência da lua sobre as marés. Um facto inexorável. Uma força cega, à semelhança da morte e do destino.

E depois as lâminas, as lâminas realmente afiadas com que Maria do Mar iria dançar, uma em cada mão. Essas lâminas é que seriam, por assim dizer, os únicos bailarinos visíveis. O seu movimento, o seu traçado, o seu estertor e a sua agitação seriam a única dança capturável pela visão. E claro, o carril circular à mesma altura desse espaço de um metro, o carril que tivemos de montar em torno do nosso ovo, a uma distância exacta, cuja medida só descobrimos ao fim de várias tentativas.

A Maria do Mar entrava dentro do ovo onde caberiam mais dez pessoas, descalça e vestida de branco, para que a sua figura se visse o menos possível atrás da gaze. E as mãos e os pés nus e o rosto descoberto também eram pintados de branco, pela mesma razão. O sítio por onde entrava era selado e o Artur B., fora do campo de visão da câmara, segurava o suporte do rolo de gaze que a Francisca teria de desenrolar.

Começávamos ao som do Improviso de Schubert em Sol bemol Maior, tocado ao piano pelo Dinu Lipatti.

A Maria, com as duas lâminas nas mãos, o corpo rígido, os braços levantados e com movimentos espasmódicos, difíceis - dir-se-ia, involuntários, como se as mãos não lhe pertencessem, ou já não soubesse utilizá-las -, ia rasgando a gaze, abrindo um sulco irregular e tortuoso, um sulco que era quase imediatamente coberto pela Francisca e pelo Artur que caminhavam atrás, com o rolo de gaze - mas esta segunda operação não se via.

Dávamos muitas voltas ao mesmo ovo sempre selado, sempre branco, sempre encerrado.

O ovo ficava sempre igual a si mesmo, intacto e indiferente.

Só no fim da música teríamos uma imagem inteira dele - enorme, imóvel, inanimado, silencioso.

Porque é que eram tão estranhos aqueles movimentos das mãos de Maria Mar, segurando nas lâminas, rasgando a gaze?

Era como se ela nunca tivesse tido mãos, como se as usasse pela primeira vez. Sobressaía desse movimento uma pura mecânica não-humana do corpo, afim desse desencontro de movimentos que encontramos nos corpos das crianças muito pequenas, quando querem usar os braços e as pernas e os agitam derrubando as coisas em vez de as agarrar. E era como se uma intensidade desproporcionada corresse naquele movimento, que o fazia vacilar e tremer por todos os lados. A todo o momento tínhamos receio de uma desintegração, de uma queda, ou de um esboroamento, o que chegou a acontecer, de facto, quando a Maria do Mar caía, ou a Francisca caía, ou eu caía.

De resto havia qualquer coisa na crispação dos movimentos da Maria ou naquela repetição, não sei precisamente, talvez na circularidade implacável do nosso trajecto, que me deixava em lágrimas. Em cem tentativas, é possível que tenhamos salvado vinte. Dessas, se conseguimos escolher uma, foi uma sorte. Mas é tão estranho que eu chorasse sempre, independentemente do juízo posterior da Maria do Mar. Nem sequer sei porque é que as lágrimas me caíam, se estava tão concentrado em conduzir a câmara. E nem pensava em mais nada senão nisso - acompanhar aquele movimento contínuo, sem paragens, o que era extremamente difícil. Conseguir não tropeçar nos pés.

Mas talvez fosse por outra coisa, talvez apenas por estarmos ali.

A maioria das tentativas eram interrompidas porque a Maria do Mar sentia que tinha perdido aquilo que ela chamava «a linha» e que eu entendia que fosse a velocidade e a tensão exactas da linha da melodia, que ela percorria no chão com os pés, que levavam o corpo. Por vezes a Maria do Mar perdia o «eixo», mas o eixo era uma coisa totalmente diferente, porventura uma força numa posição perpendicular ao plano da linha. A meu pedido, a Maria explicou-me um dia que o eixo era como uma espécie de cabo invisível que a deixava pendurada do alto, um ponto algures nas nuvens, nas estrelas, ou mesmo num coração invisível do universo, uma coisa fortíssima que a suspendia pelo peito e pela garganta, e que também doía. Porque a melodia estava no chão, enquanto aqueles acordes quebrados que tecem uma pulsação e um desespero interior ao canto, um movimento contínuo e uma agitação perpétua, na mão direita do pianista, esses acordes estavam nas duas lâminas que cortavam a gaze. Porque todo o corpo da Maria do Mar estava como que inanimado, rígido, por assim dizer, preso, e a melodia era um tapete voador ou talvez um vento em que os pés se montavam, era um vento que seguia rente ao solo e que arrastava tudo o resto, enquanto o desespero transbordava num outro patamar paradoxal, ao nível do coração nos nossos peitos, ao nível das lâminas cortando a gaze - entre a crispação e a leveza.







 

IX - Exactidão



O que amávamos em Ibsen, eu e Maria do Mar, era aquele gosto pela denúncia do cretinismo burguês, pela exposição crua da hipocrisia, pela verdade. Toda essa mania comum de viver em prol de uma imagem ou de uma ideia de sucesso, toda essa arte de se pôr ao lado dos verdadeiros afectos, dos sentimentos genuínos, das emoções puras, das percepções nuas - amávamos a arte com que ele tecia essa denúncia. 

- Estou à espera de ouvir uma coisa a falar dentro de mim, para poder agarrá-la.

- Uma coisa?

- Não é uma voz. É um andamento. Por vezes, uma ou duas frases já feitas, já compostas, e agarrei a ponta do fio. A ponta de um fio muito débil, muito difícil de agarrar.

A arte da exactidão é a mais difícil de todas - pensava eu, em silêncio.

Como ser exacto consigo mesmo?

- Qualquer coisa que começa a falar. Não achas estranho que alguma coisa comece a falar, do nada?

A. escrevia os próprios sonhos, em busca desse rigor, dessa exactidão, dessa verdade, dessa percepção sem filtro. Quem é que ele tinha amado? Queria surpreender-se numa esquina, caídas todas as máscaras. A Maria do Mar dançava, enquanto a Francisca tocava piano e escrevia orações.

- Danço porque não posso falar com Deus, tu sabes.

Hoje estávamos a arrumar os armários.

- Não é realmente estranho que alguma coisa comece a falar, de moto próprio?

- Pode ser um simples mecanismo, um hábito da mente para se acompanhar a si mesma, uma ferramenta da vida, para se manter à tona. Se alguma coisa não falasse, o silêncio não seria insuportável? Tremendo?

- E isso não é exactamente a mesma coisa que pensar que a beleza é só um subterfúgio da espécie humana para suportar um mundo que é dolorosamente incompreensível, ininteligível?

- É parecido, de facto. E é porventura uma teoria muito pobre, muito triste.

- Se não conseguimos chegar ainda a uma percepção nua, exacta, absolutamente livre, se não conseguimos ainda sentir tudo o que há para sentir sem amortecedores, sem pará-quedas, sem máscaras, e se a lucidez é ainda um projecto, e não um estado, de que nos serve uma teoria?

- Sabes como olhas para mim?

- Penso em alguém que nunca mais vi todos os dias... E não sei sequer como olho para ti...

De um lado estava a roupa para lavar. 

Do outro, a roupa para arrumar.



Tarkovski, «Solaris», 1972


VIII - Desumanidade




Mas houve um dia em que a confrontei, quase do nada, à queima-roupa:

- Não achas que é desumano viver com este espartilhamento do desejo, esta renúncia, esta exigência e esta auto-suficiência?

Estava a referir-me àquela frugalidade cultivada, àquela lapidação dos espaços e dos objectos, sempre reduzidos ao essencial, e à obsessão com que repetíamos as gravações, vezes sem fim, em busca de igualar uma imagem que a Maria do Mar talvez trouxesse impressa a ferro e fogo na imaginação, mas que não alcançávamos na película. Estava a referir-me a esta solidão povoada de livros e de amigos, que apareciam quando se lembravam, e que eram recebidos, os amigos, claro, amavelmente recebidos mas jamais influenciados fosse de que maneira fosse para ficar ou não ficar.

- Como me aflige o humano!... Como me põe doente este excesso habitual de coisas, por todo o lado!...

Eu seguia atrás de Maria do Mar, com um livro na mão, enquanto ela limpava o pó. Revezávamo-nos mais ou menos de meia em meia hora, por uma questão de justiça. Enquanto um de nós limpava, ou varria, ou arrumava - o outro lia em voz alta. É óbvio que não conseguíamos ser tão eficazes como se fizéssemos apenas uma das coisas, mas éramos mais felizes, ou menos infelizes... E a eficácia como redução do tempo necessário à produção de um certo valor, de qualquer modo, pouco nos dirá sobre a qualidade desse mesmo valor. Nestes últimos dias em particular, depois de Kierkgaard, dedicávamo-nos à leitura de Ibsen, com quem simpatizávamos tão profundamente. Mas hoje eu não conseguia concentrar-me na leitura. Estava revoltado com os últimos dez dias de gravações sem que conseguíssemos aproveitar nada, devido ao perfeccionismo doentio da Maria do Mar. Sentia-me exausto, irritado e impaciente.

- Precisas de descansar, meu querido amigo?... Tenho sido uma companhia realmente insuportável para ti?... Não precisamos de limpar a casa... Podemos dormir a sesta, ou dar um passeio. Como preferes?

- Estou para descobrir que instrumento de precisão cirúrgica carregas de um modo dissimulado para conseguir devassar inesperadamente a minha alma.

- É o teu corpo que fala sem tu saberes. Por muito que se eduquem, os adultos carregam sempre em si um resto de criança. E o corpo foge-lhes para a verdade.

- Só a mim não sei o que me diz o teu corpo sobre esta desumanidade que tem estado no auge, nesta casa, nos últimos dez dias... Não concordas que é desumano viver assim, Maria do Mar?

- Viver como, António? É preciso eliminar. Eliminar, eliminar, eliminar. Eliminar permanentemente este excesso que se cola em bandas e camadas por todo o lado, nas casas, nas memórias, nas ideias. Excesso de coisas, excesso de projectos, excesso de sonhos. Cortar, cortar, cortar. Vejo um gato magro a correr pela rua, um gato que corre com medo, olhando para trás, com o pêlo ratado, e essa vida por um fio é que é a minha humanidade, percebes?... Desumano... Viver assim... Como queres que viva?... Os olhos daquele cão. Uma barata que estrebucha de costas. Um bicho encolhido que foge... Tenho a sensação que me matam instantaneamente. Por todo o lado, aos milhares, aos milhões, os animais lutam pela vida. É uma asfixia, uma angústia... Nasces e morres. E não quererás outra coisa?... Um traço de luz, um feixe de átomos, uma pedra inteira, serão animais?... Estarão animados?... Uma montanha florida. Um gás desconhecido na atmosfera de um planeta. Um pedaço de matéria insensível. Se já conseguiste um dia desfazer a carne, os ossos, a espinha e os nervos e ter a sensação de não ser mais corpo, mas vento, corrente de gás e plano, quererás voltar a ser humano para quê, meu querido António, para voltar a dançar um fox-trot com a morte e a angústia?

- Para seres real, Maria do Mar. Por muito que te custe, a realidade tem um valor. Um valor incalculável, como a verdade. Abolir o corpo à custa de quê, Maria do Mar? Gaseificar os ossos e a carne a que preço, Maria do Mar? Quem te levanta do chão, nestas noites em que resolves dedicar-te a desfazer o corpo? Nem sequer o fazes sozinha, mas com a ajuda de uma garrafa de Vodka.

- Desconheces essa alquimia - e nunca virás a conhecê-la, meu querido amigo. Se a conhecesses, não precisarias de nada, não desejarias mais coisa nenhuma. Sonharias de um modo perpétuo com os teus primeiros sobrevoos e com as sensações minerais, finas, suaves e abstractas de seres um vento a sobrevoar a vida, indiferente e leve. Mais... muito mais do que isso... Talvez uma via láctea a circular um imenso aro de calor e de luz... Vamos dormir a sesta? Continuaremos num outro dia a limpar o pó e a discutir as nossas ideias sobre Ibsen, se quiseres. Mas não menosprezes a ajuda de uma garrafa de Vodka. Que eu saiba, não existe no mundo um amante que possa superar uma garrafa de Vodka.

- Ah!... Vamos dormir a sesta, Maria do Mar... É possível que, depois de dormir a sesta, as nossas ideias se clarifiquem.



Tarkovski, «O Espelho» (1975)






 



VII - As performances



A maioria das performances desapareceu, e ainda hoje não descobri porquê.

Quem terá ficado com elas? Ter-me-ão escapado, quando passei tudo o que tinha para A., no meio de tantos caixotes e papéis?

Tantas horas, tantas repetições, tanto trabalho...

Muito antes de ter visto dançar Kasuo Ohno, a Maria do Mar dançava qualquer coisa de parecido e ao mesmo tempo muito diferente.

Quantas vezes destruímos tudo para voltar a começar do zero?

Às vezes, depois de um dia inteiro de ensaios, repetições e gravações, já com as forças esgotadas, a Maria do Mar, ao ver os resultados, só abanava a cabeça e dizia, profundamente abatida:

- Não dá. Não funciona. Não é isto. Não vou conseguir. Nunca hei-de chegar lá.

Porque a velocidade da câmara nos carris não podia ser aquela, mas tinha de ser, pelo contrário, o perfeito equivalente ao sobrevoo de uma certa frase musical; porque os brilhos das luzes na noite não tinham sido verdadeiramente captados, estavam "amputados", dizia a Maria do Mar, como quem vê o seu rosto numa fotografia e sofre uma súbita falta de alma; porque as cores não respiravam e estavam "cortadas", "demasiado planas", "sem diáfano como ao vivo" e a combinação entre texturas não funcionava;  porque, em vez de tenso, ali naquele preciso segundo que era o mais importante o movimento ficara frouxo, "perdera a espinha"; ou porque um plano não tinha a superfície suficientemente lisa, suficientemente acetinada; porque faltara a rigidez ou a suavidade ou o peso num tecido; ou a quase imperceptível elasticidade num pequeno passo...

Mais tristeza não haveria em quem decretasse o fim de uma relação de amor.

A Maria do Mar nesses momentos ficava totalmente intratável, incomunicável.

Era como se desistisse do mundo.

Não sei ainda hoje que força ou que paixão me permitiu que suportasse a angústia de a ver refugiar-se na biblioteca com uma garrafa de Vodka ou de Gin na mão.

Porque nesses dias eu sabia de antemão que a Maria do Mar não chegaria pelo seu pé à sua cama.


Tarkovski, «Stalker» (1979)




VI - Excesso de Deus



Chegávamos por um caminho de terra batida, no meio dos ciprestes.

Antes das escadas que davam para o terraço que bordava toda a fachada principal, uma pequena fonte de calcário, discreta e suave.

Concha sobre concha. A mais pequena sobre a maior.

No meio da fachada, com as quatro janelas altas de cada lado, a porta principal, que podia abrir-se de par em par. 

Do lado direito, a sala dos nenúfares.

Do lado esquerdo, a sala de jantar e a biblioteca.

Nas paredes, as pinturas sobre o estuque por restaurar estavam incompletas, mas o chão encerado, os amplos espaços vazios, as cortinas simples de linho branco e os poucos objectos reduzidos ao estritamente essencial traziam-nos uma imediata sensação de paz, uma quietude e uma alegria silenciosas, inexprimíveis.

A Francisca escreveu poemas para cada uma destas divisões.

Um poema para as pinturas incompletas da sala de jantar, outro para os nenúfares da sala dos nenúfares, outro para as estátuas arruinadas do terraço e outro ainda para a pequena fonte de calcário.

Ela e a Maria do Mar gostavam de ler em silêncio na sala dos nenúfares, recostadas nos velhos cadeirões de pele com os pés em cima de pufes e vestidas com roupas simples e confortáveis.

Eu quando por acaso chegava a casa no fim da tarde tinha uma vontade irreprimível de mergulhar o meu rosto nos seus cabelos e de as abraçar às duas, nessas roupas de vestir depois do banho.

Na parte de trás da casa, voltada a nascente, dispunham-se os nossos quartos.

A cozinha, em frente à sala de jantar. O meu quarto que partilhava frequentemente com A., e o quarto de Artur B., em frente à biblioteca. Logo ao lado a escada, em frente da entrada, e, contíguos, os quartos duplos da Maria do Mar e da Francisca, que comunicavam entre si.

Quem me dera que esta casa fosse eterna, que o tempo que ali passámos não passasse e que os perfumes, o cheiro das coisas limpas e da roupa lavada, o cheiro da terra molhada de manhã, o cheiro da fruta no pomar e da cera no chão, nunca morressem!

Cada parede era um gesto, cada plano uma composição.

Nesta casa, por causa da frugalidade (dançante) destes espaços, eu meditei longamente sobre a relação íntima entre a sensualidade e o ascetismo.  

Porque havia uma continuidade física entre a casa e a alma da Maria do Mar, se é que é possível dizê-lo assim, deste modo.

«Não é extraordinário que o mundo seja a cores?»

Disse-me um dia a Francisca, levantando os olhos do livro que estava a ler.

Teria o comentário alguma coisa a ver com livro? - Foi a questão imediata que me ocorreu e que me levou a procurar o título do volume que segurava nas mãos.

«Não seria já absolutamente extraordinário se o mundo fosse apenas preto e branco? Não seria já de cortar a respiração, tanta beleza?»

«E ainda por cima é a cores.»

Um dique contra o caos - era a casa. Cada objecto, cada gesto, cada cor escolhida, cada perfume - uma ilha no meio do caos.

Mas natureza da relação entre o conteúdo do Opus Postumum, de Kant, e esta mínima divagação sobre o excesso de graça em que consistem as cores acabou por ser o mote de um outro livro, ou melhor, de uma outra viagem.


Tarkovski, «Andrei Rublev» (1966)








 

V - Átomos do infinito




Como é que algum dia poderei compreender a Maria do Mar?

Nunca compreendi a sua bissexualidade inoperante, como não compreendi a articulação entre o primeiro e o segundo andar desta casa, como jamais compreenderei o seu suicídio.

É possível que a minha incompreensão tenha raiz mais funda na incapacidade de perdoar, mas isso é uma outra história. 

A história longa e torturada do meu desgosto de amor por F. de Riverday.

Mas é também possível que toda a sua incoerência, toda a sua loucura, todo o deserto malsão do seu pensamento fosse afinal o lastro inevitável e maldito de uma velha tragédia familiar, muda e oculta, que nela enxertara (como tantas vezes acontece) um destes terríveis enxertos metidos na alma do modo mais tremendo e mais assustador, isto é - um elemento íntimo e fantasmático obscuramente impresso por meios diabólicos e imposto com a força inabalável de um trilho automático e incompleto em busca do seu fim ou da sua interrupção, como um desabamento de terras. 

Havia todas essas histórias, essas vidas acabadas que se tinham perdido como letras apagadas em papéis gastos. Um avô que se suicidara. Um tio. Outros que o tinham tentado. Aquele que enlouquecera. Outro que fugira. Uma rapariga que estudara às escondidas. Uma velha senhora que se especializara em Camões em Paris, antes de se casar com um homem vinte anos mais novo. Algumas mulheres invulgares. Homens desesperados. Gente desigual entre si. O pai violento que andara cinco anos desaparecido numa das grandes guerras e que voltara semi-louco. Os que abusavam do álcool. Uma menina que nascera fora do casamento. As fortunas que tinham ruído, no meio da loucura. Os sobreviventes.

Quem é que dizia: «A minha ferida existia antes de mim. Eu nasci para a encarnar?»

Talvez o que imperasse na Maria do Mar fosse afinal esta pujança inorgânica da vida intergeracional que persegue com um movimento próprio esses objectivos difíceis e inabarcáveis que suplantam os do indivíduo sem deixarem de ser singulares, objectivos que não deixarão nunca de ser específicos e perfeitamente determinados, apesar da aparente obscuridade em que se apresentam a nós, os pequenos átomos do infinito. 

Talvez a Maria do Mar, por motivos que permanecerão para sempre indestrinçáveis, abrisse espaço a esta peculiar multidão. Porque qualquer coisa se tentava fazer na Maria do Mar - e isto era certo, visível, inegável, e eu, António Pizarro, conseguia ver isto nesta casa. Era uma coisa fortíssima que tentava vir à tona, em busca de afirmação, e que disparava em mil direcções no meio de forças contrárias e possivelmente incompatíveis. 

Talvez... Talvez esta coisa da ordem do inominável fosse afinal o que justificava a quase incompossibilidade entre os dois andares da casa, por um lado, ou a qualidade desconhecida do desespero que a levara à morte, por outro.




Tarkovsky, «O Espelho» (1975)

IV - O sono é um anjo





Por tudo isto nós dormíamos no primeiro andar e não, como seria de esperar, no segundo.

De madrugada, um pouco antes do sol nascer, nesse momento em que já cantaram dois ou três galos, ora aqui, ora ali, em casas distantes, pressentindo ou percebendo os primeiros raios de luz que para nós os humanos são imperceptíveis, era esse o momento predilecto para a Maria se levantar. 

Pois a Maria gostava de se levantar ainda de noite e de sentir avançar, como a franja lenta do movimento das marés, a suavidade do lusco-fusco em que se desfaz a escuridão, antes do sol nascer.

«Cada hora do dia tem o seu timbre, a sua luz própria. Conforme muda a inclinação dos raios de sol, tudo muda. Como quando transpomos um tema musical para uma outra tonalidade. Ou quando viaja uma melodia entre instrumentos de timbre diferente. Não se pode perder nenhuma hora do dia. Cada perda é como uma vida que nos seja roubada. Já a noite... A noite é sempre a noite. Sempre igual a si própria. Uma noite de Inverno. Uma noite de Verão. Uma noite de lua cheia. Uma noite gelada. Diferente apenas pelo calor, pela lua ou pela mudança das estações. A noite não varia de hora a hora, minuto a minuto. Mas o dia, não se pode perder nem um raio de luz, ou o dia passa-nos ao lado.»

Por isso a Maria do Mar se levantava antes de todos nós, ainda de noite. Fazia religiosamente a sua cama, lavava-se, penteava-se, vestia-se e podíamos ouvi-la em breve na cozinha, a preparar uma deliciosa refeição. Como evitaríamos imitá-la? Num dia a Maria do Mar fazia panquecas, noutro scones, noutro tostas, noutro bolo ou pão caseiro e, se o dia anterior fora esforçado na horta ou no pomar, havia invariavelmente ovos com bacon e com salsichas. E havia ainda leite, chocolate, café, sumos de frutas, variando conforme a época do ano... E a sua alegria era contagiante, ninguém conseguia ficar indiferente. 

De resto, quem se atrevia a apresentar-se de pijama, de tal modo a mesa era bem posta com uma toalha esticada e impecável?

A sensação seria igual a estar de cuecas na praia.

«Não há suavidade como a do amanhecer. Não há entusiasmo nem esperança como os da manhã. A humidade que sobe da terra perfuma o ar com uma tal intensidade que não é equiparável a mais coisa nenhuma. E tudo o que é verde respira, respira amplamente, com uma amplitude que não irá nunca mais repetir-se, durante o dia. Como se todo o mundo viesse lavado, purificado pela água e pelo orvalho, como se até as pedras e as grandes rochas respirassem. Que plenitude!... Como queres que eu perca este momento? Preciso de me deixar contagiar, profundamente.»

Se estava sol comíamos no terraço, eu, a Maria do Mar, a Francisca, o Orlando, o Artur e A.

Mas nem sempre estávamos todos.

Eu podia observar que a Maria do Mar, ainda que não falasse com Deus, vivia o dia em acção de graças. Se no segundo andar toda a montagem das performances e das lonas e algerozes para fazer correr as águas da chuva se assemelhava a um engenho da loucura, aqui no primeiro andar toda a organização metódica dos objectos necessários, a frugalidade, o ascetismo, o cuidado com que cada enquadramento em cada parede tinha sido arranjado de modo a proporcionar uma visão única, equilibrada, vibrante e pacífica, o cheiro a cera do soalho e a limpeza meticulosa que se exalava de cada canto, tudo isto me fazia pensar numa outra personalidade, quase oposta à primeira.

Porque, para a Maria do Mar, a abundância nunca deixava de a espantar. Que houvesse, nas prateleiras dos supermercados, não um único tipo de queijo, mas camembert, brie, mozarella, parmesão, ricotta, requeijão, queijo fresco, flamengo, gruyére, queijo da serra, queijo da ilha, queijo de São Miguel, de mistura, de cabra, de vaca, e enfim, que fossem todos tão deliciosos, que não houvesse apenas pêras, maçãs, mas laranjas, limões, tangerinas, romãs, ameixas, uvas, castanhas, ananás, abacate, lichias, mangas, morangos, framboesas, amoras, mirtillos, pêssegos, paraguaios, bananas, melão, quiwis... Para não falar de todos os tipos de legumes, verdes, vermelhos, brancos, laranjas, e dos diferentes pães, das bolachas, dos cafés, dos chás, das especiarias, dos leites, dos iogurtes, das natas, das farinhas, dos azeites, óleos e vinagres, dos açúcares, dos arrozes, das massas, dos enlatados... 

A Maria dizia-me que a haver vidas anteriores ela devia ter andado descalça em todas elas e que devia ter passado muita fome, ou ter andado fugida numa guerra, porque, mesmo sem saber rezar, depois da mesa posta nunca podia conter totalmente, por um lado, a perplexidade, e, por outro, a gratidão.

«O sol do meio-dia é como o som de um trompete em fortíssimo, metalizado e agreste. O sol a pique só é bom para uma coisa - a sesta. Mas já o entardecer tem exactamente o timbre de um quarteto de cordas, aberto a infinitas possibilidades, aberto a uma gama infinita, dentro de uma comum sensualidade. A tarde é um leque infinito. E o segundo lusco-fusco, breve e mágico, como é inenarrável!... O segundo lusco-fusco é de novo um pico, um pico de intensidade, mas com a nostalgia impregnada dessa angústia de nos mergulhar tão rapidamente na noite, na escuridão.»

O sono é um anjo. - dizia a Maria do Mar.





Tarkovski, «Infância de Ivan» (1969)

III - O céu através do telhado





No segundo andar, A Maria do Mar lutava de um modo absurdo contra a água. 

Porque é que ver o céu através do telhado seria mais importante do que restaurar o telhado?

Todos os oito quartos da ala nascente estavam destruídos e por todo o lado as lonas e as chapas onduladas se articulavam para escoar a água, de modo a proteger o primeiro andar, onde dormíamos.

Não vou aqui falar das discussões infindáveis que tive com a Maria do Mar, desde 1986, o ano em que decidiu vir viver com a Francisca para Viana do Castelo.

Várias vezes me dediquei a passear lentamente por aqui, por estes quartos destruídos com as altas janelas sobre os campos, paredes manchadas e telhado inexistente ou esburacado, por onde se entreviam as estrelas fugidias ou as nuvens do céu.

As placas de chapa justapostas e inclinadas, assentes em estacas ou suspensas de cordas, os oleados como panos de tendas ou velas de barcos, aqui e ali, traçando um caminho ou amparando uma desunião e criando como que uma ilusão de vales e de abstractas colinas, toda esta montagem me parecia ser ela mesma a própria parafernália da loucura, a boca de cena de um mundo prestes a ser engolido pelo caos, à beira de um abismo inerte, silencioso e colossal.

A Maria do Mar servira-se amiúde da estrutura de velhos algerozes, que combinara com os edifícios singulares de chapa e oleado, para fazer correr a água.

Que loucura!...

Mas eu, António Pizarro, não só fotografei e filmei a água a correr por esses caminhos delicadamente planeados em dias de chuva, como esperei meses para conseguir gravar o som exacto da água a correr, o som das gotas de água sobre as chapas metálicas e sobre os oleados, entrando e saindo dentro de casa, correndo nos algerozes, o som desta água que afinal entrava e saía com a mesma delicadeza e esmerada educação de um aristocrático e nobre visitante. 

Na ala poente, cujo telhado estava ainda intacto, a Maria do Mar destruíra todas as paredes conservando apenas os pilares de modo a criar um espaço único, tão grande como um armazém. Foi aí que tantas vezes a ajudei na filmagem das performances às quais dedicava horas infindáveis e para cujo financiamento vendera as casas de Lisboa e do Alentejo.

Porque era mais importante comprar metros e metros de gaze de modo a cobrir a estrutura em arame de um ovo gigante, era mais importante comprar tecidos, câmaras, materiais, lâmpadas, holofotes, tintas, vidros, redes metálicas, carris, do que restaurar o que quer que fosse.

- Morremos nós e ficam as coisas. - repetia a Maria do Mar. - Um dia, nem sequer as coisas. Ruem os tectos. Partem-se os pratos. Até para a árvore que vive cinco mil anos a morte há-de chegar. E virá o dia em que o último descendente de cada espécie sucumbirá. Não sobrará ninguém para ler os livros de ninguém, nem haverá ouvidos para as Cantatas de Bach. E nem o planeta girará eternamente em torno do sol, nem as estrelas serão sempre as mesmas no mesmo céu. Nada é fixo. Nada ficará. Que queres que eu faça, António? Que me empenhe durante a vida a restaurar telhados? Prefiro ver o céu através dos telhados. E tu, espera, não te vás embora. Podes segurar na câmara enquanto danço? Ninguém vê melhor do que tu. Não existem olhos como os teus, nem alma como a tua. É um facto.
 




Tarkovski, «O Espelho» (1975)


II - Tarkovski




«- Se eu pudesse, escrevia-lhe uma carta de amor. 

- A Tarkovski?

- Ajoelhava-me à sua frente e abraçava-lhe os joelhos - se eu pudesse - e se ele fosse vivo, escrevia-lhe uma carta de amor.

- Porque não escrever-lhe na mesma, apesar de estar morto?

- Sim. Porque não?... No «Sacrifício», lembras-te de como ele começa pela cena em que o pai conta ao filho a lenda de Ioann Kolov, que foi instruído pelo seu mestre, o monge Pamve, para subir uma montanha todos os dias e regar uma árvore morta que o mestre tinha plantado, e ao terceiro dia a árvore viveu?

- Lembro-me perfeitamente.

- Eu penso que tu és como Alexander neste filme, António. Tudo parece tão idílico. O pai e o rapaz, no meio daquela paisagem extraordinária, no meio daqueles campos tão suaves e tão planos à beira da água, onde as hastes do feno seco parece que dançam e murmuram, como uma extensa alma viva... Pois há esse plano em que se ouve apenas o som do vento a correr sobre o feno... Como é que Tarkovskki conseguiu fixar essa subtileza? Essa infinitude?... A partir desse momento ficamos deitados no chão, no meio do feno. Já não conseguimos sair mais do interior da película mágica. E a casa de madeira isolada à beira do mar e ao lado das árvores, com as cortinas ondulando para fora das janelas abertas... Como amamos esta casa, através da câmara de Tarkovski!... Os alpendres. As cadeiras de verga. As escadas. As ombreiras luminosas das altas janelas. As paredes. A composição dos quadros. A caminha de grades, no quarto do filho, ao lado da pequena cadeira, do espelho e da cómoda. Uma chávena de chá, sobre uma toalha branca, e, ao lado, uma maçã... Andamos por ali e como é agradável e fresca a casa isolada no meio do campo, à beira do mar... Cheira a madeira encerada e a vento suave. Pode-se ficar a ler e a pensar. Tudo é tão belo e tão calmo, são tão românticas as vestes da senhora e da sua filha, com tecidos e drapejados tão suaves e tão principescos que parecem chegados de outras eras, mas afinal, afinal nada é assim tão sereno e tão pouco obscuro, não é verdade? Sem querer, o pai faz jorrar o sangue na testa do filho, ao procurá-lo desesperado no meio das árvores. O Pequeno Homem está mudo e em convalescença de uma operação à garganta. Ele nunca fala. A jovem senhora, muito mais jovem que o seu marido, é tão fútil, meu Deus... E é adúltera, insensível, cruel, descompensada e levemente histérica. A sóbria criada ama mais o filho desta mãe do que ela própria. O médico, gentil e complacente, é o amante da jovem senhora e talvez da filha, enteada de Alexander, com o consentimento ou com a indiferença de ambos. À instável Adelaide, acalma-lhe as crises de nervos com morfina, ou com algum outro opiáceo. Contra a vontade da filha, insiste em drogá-la também, com uma injecção do mesmo veneno. Afinal, que idílio é este? Existe ainda a Maria, a criada de fora que tem um aspecto tão extravagante e infeliz. E como a detestável senhora é cruel com ela!... Meu Deus!... Otto, o carteiro nos tempos livres, dedica-se a coleccionar factos insólitos de que dá um único exemplo. É o daquela mãe que, antes da Segunda Guerra Mundial, decide tirar uma fotografia com o filho antes de ele partir para a frente de batalha. O filho morreu e ela nunca foi buscar a fotografia. Como é possível?... Mas passados muitos anos, vinte ou trinta anos, ela foi de novo tirar uma fotografia, e nessa nova fotografia apareceu o filho tal como estava na última fotografia antes de morrer, exactamente na mesma posição a seu lado e com os mesmos dezanove anos, e ela, já velha, com a idade actual. Não era uma montagem. Não era uma invenção. Otto comprovou cada facto, cada elemento da história, o que lhe deu imenso trabalho. Otto também detesta uma reprodução de Da Vinci que está pendurada numa parede, «A Adoração de Maria». Ele diz que se sente aterrorizado com essa pintura, que Da Vinci sempre o aterrorizou. E na verdade não se trata de uma adoração, a cena que está pintada, mas do retrato terrível da concupiscência sexual do homem pela mulher, esse poderoso dínamo da maldade humana, tão universal... Uma das cenas mais pungentes do filme é quando Alexander comenta em surdina as pinturas medievais ortodoxas de Andrei Rublev, num livro que lhe dão de presente de anos. «Tão sério, tão intenso, tão inocente.» - murmura Alexander, passando os dedos pelas magníficas reproduções. «Quase virginal.» E quando, à hora do jantar, rebenta a notícia de que deflagrou o início do primeiro conflito nuclear mundial, que irá certamente destruir o planeta, é Otto quem vem falar com Alexander. Já não há luz na casa. As telecomunicações estão cortadas. Alexander, que se considerava ateu, ajoelha-se e reza a Deus, pela humanidade, pela casa, pela família e pelo filho. Alexander pede a Deus que tudo fique como estava antes e Otto, a meio da noite, traz-lhe uma solução mágica. Ele precisa de se deitar com Maria, a criada infeliz e extravagante. Parece que ela é uma bruxa, «no bom sentido», e, se Alexander se deitar com ela, tudo voltará a ser como antes. Alexander (e nós conseguimos percebê-lo apenas pela expressão do seu rosto) sente-se enlouquecer. Hesita. Sofre. Por fim dirige-se à casa de Maria de bicicleta, com uma pistola no bolso. Maria levanta-se da cama, perplexa, e lava-lhe as mãos cheias de lama, pois Alexander tinha caído da bicicleta. Alexander toca Bach no pequeno órgão e conta a história do jardim da casa de sua mãe, cuja beleza só compreendeu tarde de mais. Ambos choram. Alexander cortou, serrou, escavou, arrancou e desbastou esse jardim para conseguir arranjá-lo, antes da mãe morrer. Só depois é que percebeu o que tinha feito com o jardim desarranjado e selvagem. Será que a mãe chegou a vê-lo, ao jardim arranjado, ou será que ela morreu com ele, com o jardim bem cortado e bem serrado? O velho Alexander pede a Maria que o ame, mas é recusado. Quando ela se volta, ele tem a pistola apontada à cabeça. Ou ela o ama, ou ele mata-se. E ela acede. Os dois corpos levitam sobre a cama, como que envoltos em feitiço, e, no dia seguinte, tudo volta a ser como sempre. Há electricidade. Estão vivas as comunicações. É de novo o dia de anos de Alexander. E então o que é que ele faz?... Mas tu sabes o que ele faz!... Deita fogo à casa. Impossível descrever esta cena. A casa arde. Arde realmente. A lindíssima casa de madeira à beira da água arde, com tudo lá dentro. A caminha de grades, o espelho, a escada em caracol... A casa arde e as chamas erguem-se ao alto e nós temos medo, mas tanto medo, temos um medo desumano e terrível de que o fogo se propague às árvores ou nos incendeie a nós que já ardemos por dentro do princípio ao fim do filme. Alexander é levado por uma ambulância para um hospital de loucos. Maria segue-o de bicicleta, mas não o alcança, e Tarkovski dedica este que é o seu último filme ao filho, «com fé e com esperança».

- Alexander sacrificou a casa.

- Não. Alexander sacrificou o jardim. Alexander sacrificou Maria.

- E tu sabes que, na primeira filmagem, a câmara encravou, provavelmente com o calor, Maria? Tarkovski insistiu em filmar com uma única câmara, à revelia dos conselhos e da vontade de Sven Nykvist, o co-produtor, e a câmara encravou. Tiveram de reconstruir a casa em apenas duas semanas e refazer a cena, desta vez com duas câmaras. As duas câmaras foram colocadas em carris que corriam paralelos um ao outro e a cena final é a da segunda câmara e dura seis minutos terminando abruptamente porque a câmara gastou uma bobina inteira. E toda a equipa rebentou em lágrimas quando percebeu que tinham conseguido concluir a filmagem.

- Eu sei. E tu sabes que és exactamente como o Alexander neste filme, António?»



Tarkovski, «O Sacrfício» (1986)

Textos de António Pizarro - I



«Quem viesse da estrada principal tinha de cortar à esquerda por um caminho de terra batida que deixava os pneus dos carros cobertos de um pó fino e branco, difícil de limpar. 

Poderíamos imaginar-nos em Itália, nesse longo e estreito caminho ladeado de ciprestes que serpenteava por entre os campos outrora cultivados e onde ao fundo a velha casa de dois andares, longa, com as nove janelas altas dispostas lado a lado na clássica fachada sob comprido, constituía uma promessa. 

Pintada de um amarelo já muito gasto, irreconhecível, toda a fachada se abria sobre o chão de um terraço numa tijoleira muito velha, coberta de um pó alaranjado que se colava aos pés. 

No muro baixo desse terraço é que se erguiam a intervalos regulares as esculturas arruinadas em calcário sobre as quais a Francisca escrevera um poema em «A um Deus Desconhecido», algures entre 1986 e 1989, e, no andar de cima, metade dos quartos não tinha tecto, porque o telhado ruíra. "Prefiro ver o céu através do telhado." Respondia a Maria do Mar quando lhe falavam em restaurar o telhado. 

O mundo não fazia qualquer sentido para a Maria do Mar. Era um mundo absolutamente non-sense, um teatro o mais louco possível. 

O mundo da produção, dos objectivos e das metas a alcançar, o mundo do dinheiro, das massas, do prestígio e da captura de todo o desejo pela medida de uma só e mesma bitola, esse mundo era opaco e totalmente ilegível para a Maria do Mar. 

Na sala de jantar onde comíamos todos os dias, por exemplo, o desejo e a alegria da Maria do Mar consubstanciavam-se em ver aquela rosa branca dentro de uma velha jarra azul, já sem valor (porque as quedas esporádicas ao longo de tantos anos tinham estragado uma parte do discreto trabalho oriental em cloisonné), contra uma parede que estava pintada de vermelho escuro. 

E que o móvel em cima do qual elas estivessem, a rosa branca e a jarra azul, fosse tão antigo que a própria madeira estalada perfizesse a ladaínha surda do tempo contra a morte e que não houvesse ali mais nada, naquela parede e em cima daquele móvel, absolutamente mais nada sem ser o vazio que deixasse falar o vermelho, o azul e a rosa. 

Mas "falar" talvez seja uma má metáfora. O que o vazio permitia era que a intensidade da ressonância entre os espaços e as cores (entre as áreas de cor) vibrasse livremente, sem obstáculos, e esta ressonância ía e vinha, como uma dança. 

Claro que eu, António Pizarro, podia compreender a Maria do Mar e as suas discretas composições de cor e vazio que habitavam tão subtil e elegantemente aquela casa. Não a compreendia, porém, na incoerência que a impedia de vender todas as propriedades arruinadas e de fazer qualquer coisa mais útil e altruísta com o dinheiro. 

"Que sabes tu sobre o que é melhor?... Sobre o mundo?... Não sabes que tu serias exactamente como Alexander naquele filme de Tarkovski, «O Sacrifício»?... Deitarias fogo à tua própria casa depois de tudo teres feito para a salvar, depois de teres sacrificado a própria Maria. E sabes porquê? Porque perceberias de repente que estava tudo errado, que as tuas ideias estavam todas erradas." 

Este tinha sido um dos nossos maiores desacordos, a propósito de um filme de Tarkovski, e era difícil suportar a Maria do Mar naqueles raros momentos de profunda arrogância. Mas embora não a compreendesse em tantos aspectos, podia compreendê-la na paz e na alegria que ela sabia compor a partir das pequenas coisas e acima de tudo com planos vazios, interrompidos, e nas sinfonias de cor com que entrelaçava os afectos subtis e abstractos que me atingiam como corpos, como abraços, e que me provocavam uma tal felicidade, que me traziam uma tão grande paz. 

Talvez por isso eu pensasse tanto na Maria do Mar enquanto traçava os planos para o meu futuro livro - «O Elogio da Frugalidade». 

E talvez por isso a memória desta casa, mesmo depois da trágica morte da Maria do Mar e de todo o espanto e sofrimento que nos causou, não parasse de me assombrar e fascinar, tal como todos esses movimentos perpétuos que obscuramente nos hipnotizam; como os dias e as noites ao longo das nossas vidas; ou como o nosso rosto no espelho, sempre repetido e novo.»

Havia ainda, nessa grande casa
em que vivíamos, eu e Maria do Mar,
uma outra sala, geminada com a primeira,
em frente do terraço, com essas altas portas
envidraçadas que se abriam sobre os campos.
Chamávamos-lhe «Sala dos Nenúfares»,
por causa dessa curiosa pintura circular
que um certo bisavô, porventura excêntrico,
decidira fazer ao longo das paredes,
ocupando-as na totalidade, de tal forma
que os únicos móveis ali expostos,
no centro da sala, deixando livre tudo em volta,
eram dois velhos sofás e uns cadeirões de pele,
já muito gastos e estragados, e inclinados,
e uma cadeira de baloiço, em palhinha, sobre um tapete,
e nada mais, porque a intensidade dessa pintura
enchia todo o espaço de uma excessiva presença.
Tínhamos o hábito de ler, aí, nessa sala,
rodeadas por esse verde meio opaco
que era o das águas paradas de um lago,
aqui e ali, coberto de nenúfares,
essas flores aquáticas que com suave brancura
delicadamente iluminavam a penumbra,
e era tão bom e tão suave esse contraste entre o verde
das águas e o verde das folhas dos nenúfares
quase em forma de coração, sobre elas poisadas,
e era tão bom esse outro rosa das pequenas flores
que caíam, em cascata, das trepadeiras que se erguiam,
ao longo das paredes, enquanto líamos as duas,
em silêncio, confortavelmente estendidas nos sofás.
Do terraço vinha essa suave luminosidade
que nos libertava, e ao longe, sobre as amuradas,
podíamos ver essas brancas figuras humanas
que alguém esculpira em calcário,
agora incompletas, arruinadas pelos anos
que sucessivamente tinham passado,
sem que houvesse um trabalho de restauro.
Numa faltava uma cabeça, noutra um braço,
noutra ainda uma mão, ou um pé,
mas a delicadeza dos suaves drapejados,
modelando os corpos, não se tinha perdido,
nem se perdera essa silenciosa majestade,
essa comovente dignidade da vida que se ergue,
tão frágil, e tão desafiante, no meio do movimento
da matéria que parece um turbilhão, e nessa altura,
enquanto líamos, essas figuras humanas sobre os muros
do que nos falavam era precisamente desta
estranha e curiosa dupla condição
que é uma linha de tensão que persiste
entre erguer-se e estar arruinado.

in Francisca M., A um Deus Desconhecido, Poema XXVI


Tarkovski, O Espelho (1975)

Maria do Mar



Passados muitos anos, ao fixar um desconhecido, a Maria do Mar lembrara-se de D., uma das suas paixões. O que é que vira nele? - perguntava-se. Tirando o álcool e a imaturidade, nada tinham em comum. Seria o corpo desengonçado e magricelas, com as pernas arqueadas, à Lucky Luke? Sempre gostara imenso do Lucky Luke, desde pequena. Mas havia por outro lado aquela velocidade um pouco impaciente com que ele se movia, com um excesso de energia, e que a provocava terrivelmente. Passados tantos anos, conseguia recordar com perfeição e nitidez os caracóis negros e rebeldes que lhe emolduravam o rosto, tão macios. E os olhos negros e pontiagudos que um dia a tinham fixado com gozo e acertado no fundo da alma. Mas porque será, porque será que alguns seres, raríssimos, e nem sequer os mais belos, nos surgem com esse feitiço de colocar em marcha a dança subterrânea e obscura do nosso desejo? O certo é que hoje, ao olhar para os dentes ligeiramente tortos de um desconhecido que faziam a sua boca tomar a forma de um suave bico (uma forma humorística, risonha), se lembrara de um modo involuntário de como essa composição de traços peculiares lhe acertara com a intensidade de um hieróglifo cujo significado não era menos que a totalidade da vida cósmica, não era menos, como dizê-lo, que a vida em pessoa, que assim a atingira como uma aparição fulgurante e que era o texto indecifrado de uma promessa consistente e precisa - a de uma máxima alegria.

«Podes vir ter comigo?» Dissera ele, já noite avançada. Tinha o carro avariado - e os pais não estavam em casa. Já não tinha idade para viver em casa dos pais. Era um imaturo, uma dessas pessoas que sofrem continuamente para crescer. Mas a Maria do Mar, disfarçando-se um pouco melhor, era igual. Tinha tirado a carta de condução apenas há dois dias, chovia como num dilúvio, não se via um palmo à frente do nariz, mas não se intimidou. Debaixo de uma borrasca tremenda, pôs-se a caminho, com o coração aos saltos. Mesmo com os pára-brisas no máximo, a água não saía do vidro frontal e jorrava como se o próprio céu estivesse a desabar. «Isto é que é ser atirada para a realidade, caramba, de um só golpe!...» Só que em vez de ir para a Ericeira, foi parar ao Cacém. Passadas quase três horas, quando finalmente chegou, feliz com as duas garrafas de Vodka que guardara no saco onde levava um pijama, o seu amante tinha adormecido. A Maria do Mar atirou pedrinhas à janela, que era no primeiro andar, mas nada. «Adormeceu tão bêbado que não acorda nem que rebente uma bomba à porta de casa.» Do outro lado da porta, a Bá, que era uma velha e boa labrador retriever, resfolegava, andando de um lado para o outro. A Maria do Mar experimentou todas as janelas que davam para o caminho de terra batida onde deixara o carro, mas nada. Então saltou o muro que dava para o jardim que forrava a parte de trás da casa, com o saco a tiracolo. Nem sequer podia sentar-se no chão e pôr-se a beber, pois poderia ter de pegar no carro para voltar... Nenhum consolo!... Suavemente, o céu ficara totalmente limpo e viam-se as estrelas uma por uma, a brilhar ao alto. E a terra molhada exalava um cheiro magnífico, inebriante. «Ah!... Que tristeza!...» Pensava a Maria do Mar. «Não é possível, meu Deus, que tanto esforço dê em nada!...» Na parte de trás da casa todas as janelas estavam igualmente fechadas e a Maria do Mar, sentindo-se como um gato a quem tivessem despejado um balde de água em cima, encostou-se à porta com o corpo inteiro, ao mesmo tempo que suspirava. Venturosa e inesperadamente, foi no mesmo segundo que se encontrou estatelada no chão, com o saco a tiracolo, porque a porta que estava apenas encostada se abrira com o seu peso. A velha e boa Bá lambia-lhe a cara e à sua frente estava uma antiga cómoda de pau santo com um enorme Cristo crucificado em cima, imponente e sofrido. Podia ser um Cristo, uma Nossa Senhora, um Buda, um Totem, um ovo da Páscoa, um dólmen ou um menir. Apesar de se considerar agnóstica, a Maria do Mar pôs-se de joelhos para agradecer àquele Deus a ventura inesperada de estar dentro de casa e trepou as escadas para o primeiro andar num ápice, felicíssima. «Olá.» Disse ela baixinho. «Estou aqui.» Mas ele dormia ferrado no alto do beliche que era uma cama realmente minúscula para dois e que tinha um estirador muito desarrumado em baixo. A Maria do Mar despiu-se, enfiou o pijama e bebeu alguns golos rápidos da garrafa de Vodka, até se sentir amolecer e relaxar, na onda de calor. Dispôs-se a trepar as escadas do beliche, quando lhe deu um ataque de riso. «Jovem rapariga morre alcoolizada ao cair das escadas do beliche do seu amante.» Com as mãos na boca riu-se ainda durante algum tempo sentada no chão, até conseguir trepar pelas escadas e enfiar-se na cama, depois de passar por cima do corpo dele. Adormeceu, meio dispersa entre a suave e morna dissipação do álcool que sentia a correr-lhe no sangue, o cheiro mágico que vinha daquele corpo desejado e a sensação nova que lhe dava a luz passando pelas frestas das portadas de madeira. No dia seguinte, ele acordou-a com um salto que quase o fez bater no tecto, ao descobri-la ali. «És um ninja?!...» A Maria do Mar não sabia muito bem o que fosse um ninja. «Daqueles que andam por cima dos telhados, com uma capa preta?» Pois nunca é muito boa ideia concordarmos com coisas acerca das quais não estamos muito certos, só para sermos agradáveis. A Maria do Mar porém não contou a sua aventura, nem como se tinha ajoelhado à frente do velho Cristo. Preferiu, como em tantas outras coisas, guardar segredo. Seria talvez uma excessiva declaração de amor, ou uma excessiva declaração de inocência, quem sabe? Assim, por timidez, mas mais ainda por orgulho, a Maria do Mar deixava-se estar à beira do mundo. Aliás, sempre à beira de qualquer coisa, como se num estado de promessa permanente. À beira da sinceridade, à beira da intimidade, à beira do amor, à beira da verdade... e acima de tudo, e de um modo pungente, para a Maria do Mar, à beira da morte - essa não-experiência.



Tarkovski (polaroid)