VIII - Desumanidade




Mas houve um dia em que a confrontei, quase do nada, à queima-roupa:

- Não achas que é desumano viver com este espartilhamento do desejo, esta renúncia, esta exigência e esta auto-suficiência?

Estava a referir-me àquela frugalidade cultivada, àquela lapidação dos espaços e dos objectos, sempre reduzidos ao essencial, e à obsessão com que repetíamos as gravações, vezes sem fim, em busca de igualar uma imagem que a Maria do Mar talvez trouxesse impressa a ferro e fogo na imaginação, mas que não alcançávamos na película. Estava a referir-me a esta solidão povoada de livros e de amigos, que apareciam quando se lembravam, e que eram recebidos, os amigos, claro, amavelmente recebidos mas jamais influenciados fosse de que maneira fosse para ficar ou não ficar.

- Como me aflige o humano!... Como me põe doente este excesso habitual de coisas, por todo o lado!...

Eu seguia atrás de Maria do Mar, com um livro na mão, enquanto ela limpava o pó. Revezávamo-nos mais ou menos de meia em meia hora, por uma questão de justiça. Enquanto um de nós limpava, ou varria, ou arrumava - o outro lia em voz alta. É óbvio que não conseguíamos ser tão eficazes como se fizéssemos apenas uma das coisas, mas éramos mais felizes, ou menos infelizes... E a eficácia como redução do tempo necessário à produção de um certo valor, de qualquer modo, pouco nos dirá sobre a qualidade desse mesmo valor. Nestes últimos dias em particular, depois de Kierkgaard, dedicávamo-nos à leitura de Ibsen, com quem simpatizávamos tão profundamente. Mas hoje eu não conseguia concentrar-me na leitura. Estava revoltado com os últimos dez dias de gravações sem que conseguíssemos aproveitar nada, devido ao perfeccionismo doentio da Maria do Mar. Sentia-me exausto, irritado e impaciente.

- Precisas de descansar, meu querido amigo?... Tenho sido uma companhia realmente insuportável para ti?... Não precisamos de limpar a casa... Podemos dormir a sesta, ou dar um passeio. Como preferes?

- Estou para descobrir que instrumento de precisão cirúrgica carregas de um modo dissimulado para conseguir devassar inesperadamente a minha alma.

- É o teu corpo que fala sem tu saberes. Por muito que se eduquem, os adultos carregam sempre em si um resto de criança. E o corpo foge-lhes para a verdade.

- Só a mim não sei o que me diz o teu corpo sobre esta desumanidade que tem estado no auge, nesta casa, nos últimos dez dias... Não concordas que é desumano viver assim, Maria do Mar?

- Viver como, António? É preciso eliminar. Eliminar, eliminar, eliminar. Eliminar permanentemente este excesso que se cola em bandas e camadas por todo o lado, nas casas, nas memórias, nas ideias. Excesso de coisas, excesso de projectos, excesso de sonhos. Cortar, cortar, cortar. Vejo um gato magro a correr pela rua, um gato que corre com medo, olhando para trás, com o pêlo ratado, e essa vida por um fio é que é a minha humanidade, percebes?... Desumano... Viver assim... Como queres que viva?... Os olhos daquele cão. Uma barata que estrebucha de costas. Um bicho encolhido que foge... Tenho a sensação que me matam instantaneamente. Por todo o lado, aos milhares, aos milhões, os animais lutam pela vida. É uma asfixia, uma angústia... Nasces e morres. E não quererás outra coisa?... Um traço de luz, um feixe de átomos, uma pedra inteira, serão animais?... Estarão animados?... Uma montanha florida. Um gás desconhecido na atmosfera de um planeta. Um pedaço de matéria insensível. Se já conseguiste um dia desfazer a carne, os ossos, a espinha e os nervos e ter a sensação de não ser mais corpo, mas vento, corrente de gás e plano, quererás voltar a ser humano para quê, meu querido António, para voltar a dançar um fox-trot com a morte e a angústia?

- Para seres real, Maria do Mar. Por muito que te custe, a realidade tem um valor. Um valor incalculável, como a verdade. Abolir o corpo à custa de quê, Maria do Mar? Gaseificar os ossos e a carne a que preço, Maria do Mar? Quem te levanta do chão, nestas noites em que resolves dedicar-te a desfazer o corpo? Nem sequer o fazes sozinha, mas com a ajuda de uma garrafa de Vodka.

- Desconheces essa alquimia - e nunca virás a conhecê-la, meu querido amigo. Se a conhecesses, não precisarias de nada, não desejarias mais coisa nenhuma. Sonharias de um modo perpétuo com os teus primeiros sobrevoos e com as sensações minerais, finas, suaves e abstractas de seres um vento a sobrevoar a vida, indiferente e leve. Mais... muito mais do que isso... Talvez uma via láctea a circular um imenso aro de calor e de luz... Vamos dormir a sesta? Continuaremos num outro dia a limpar o pó e a discutir as nossas ideias sobre Ibsen, se quiseres. Mas não menosprezes a ajuda de uma garrafa de Vodka. Que eu saiba, não existe no mundo um amante que possa superar uma garrafa de Vodka.

- Ah!... Vamos dormir a sesta, Maria do Mar... É possível que, depois de dormir a sesta, as nossas ideias se clarifiquem.



Tarkovski, «O Espelho» (1975)