X - Danças




Montar um ovo de gaze no andar superior da casa de Maria do Mar foi das coisas mais tremendas que realizámos.

Primeiro, a estrutura, com finas calhas de alumínio e arame.

Custou-nos várias semanas, imenso dinheiro - e uma enorme frustração.

Nenhum de nós tem espírito de engenheiro, a todos falta uma espécie de pragmatismo elementar. Porque a estrutura do ovo era uma coisa enorme, altíssima, mas tinha de ter um espaço bastante livre de mais ou menos um metro a partir da altura da cintura de Maria do Mar. Porquê? Será fácil perceber porquê.

Depois foi preciso gaze. Metros e metros e metros de gaze. Nisto eu e a Maria do Mar não podíamos estar sozinhos. A Francisca e o Artur B. tinham de nos ajudar, como dois dançarinos invisíveis mas fulcrais, perfeitamente articulados com o restante movimento da cena.

Na verdade, ambos constituíam o duplo par de Maria do Mar, mas um par não amigável, implacável. Eram como a influência da lua sobre as marés. Um facto inexorável. Uma força cega, à semelhança da morte e do destino.

E depois as lâminas, as lâminas realmente afiadas com que Maria do Mar iria dançar, uma em cada mão. Essas lâminas é que seriam, por assim dizer, os únicos bailarinos visíveis. O seu movimento, o seu traçado, o seu estertor e a sua agitação seriam a única dança capturável pela visão. E claro, o carril circular à mesma altura desse espaço de um metro, o carril que tivemos de montar em torno do nosso ovo, a uma distância exacta, cuja medida só descobrimos ao fim de várias tentativas.

A Maria do Mar entrava dentro do ovo onde caberiam mais dez pessoas, descalça e vestida de branco, para que a sua figura se visse o menos possível atrás da gaze. E as mãos e os pés nus e o rosto descoberto também eram pintados de branco, pela mesma razão. O sítio por onde entrava era selado e o Artur B., fora do campo de visão da câmara, segurava o suporte do rolo de gaze que a Francisca teria de desenrolar.

Começávamos ao som do Improviso de Schubert em Sol bemol Maior, tocado ao piano pelo Dinu Lipatti.

A Maria, com as duas lâminas nas mãos, o corpo rígido, os braços levantados e com movimentos espasmódicos, difíceis - dir-se-ia, involuntários, como se as mãos não lhe pertencessem, ou já não soubesse utilizá-las -, ia rasgando a gaze, abrindo um sulco irregular e tortuoso, um sulco que era quase imediatamente coberto pela Francisca e pelo Artur que caminhavam atrás, com o rolo de gaze - mas esta segunda operação não se via.

Dávamos muitas voltas ao mesmo ovo sempre selado, sempre branco, sempre encerrado.

O ovo ficava sempre igual a si mesmo, intacto e indiferente.

Só no fim da música teríamos uma imagem inteira dele - enorme, imóvel, inanimado, silencioso.

Porque é que eram tão estranhos aqueles movimentos das mãos de Maria Mar, segurando nas lâminas, rasgando a gaze?

Era como se ela nunca tivesse tido mãos, como se as usasse pela primeira vez. Sobressaía desse movimento uma pura mecânica não-humana do corpo, afim desse desencontro de movimentos que encontramos nos corpos das crianças muito pequenas, quando querem usar os braços e as pernas e os agitam derrubando as coisas em vez de as agarrar. E era como se uma intensidade desproporcionada corresse naquele movimento, que o fazia vacilar e tremer por todos os lados. A todo o momento tínhamos receio de uma desintegração, de uma queda, ou de um esboroamento, o que chegou a acontecer, de facto, quando a Maria do Mar caía, ou a Francisca caía, ou eu caía.

De resto havia qualquer coisa na crispação dos movimentos da Maria ou naquela repetição, não sei precisamente, talvez na circularidade implacável do nosso trajecto, que me deixava em lágrimas. Em cem tentativas, é possível que tenhamos salvado vinte. Dessas, se conseguimos escolher uma, foi uma sorte. Mas é tão estranho que eu chorasse sempre, independentemente do juízo posterior da Maria do Mar. Nem sequer sei porque é que as lágrimas me caíam, se estava tão concentrado em conduzir a câmara. E nem pensava em mais nada senão nisso - acompanhar aquele movimento contínuo, sem paragens, o que era extremamente difícil. Conseguir não tropeçar nos pés.

Mas talvez fosse por outra coisa, talvez apenas por estarmos ali.

A maioria das tentativas eram interrompidas porque a Maria do Mar sentia que tinha perdido aquilo que ela chamava «a linha» e que eu entendia que fosse a velocidade e a tensão exactas da linha da melodia, que ela percorria no chão com os pés, que levavam o corpo. Por vezes a Maria do Mar perdia o «eixo», mas o eixo era uma coisa totalmente diferente, porventura uma força numa posição perpendicular ao plano da linha. A meu pedido, a Maria explicou-me um dia que o eixo era como uma espécie de cabo invisível que a deixava pendurada do alto, um ponto algures nas nuvens, nas estrelas, ou mesmo num coração invisível do universo, uma coisa fortíssima que a suspendia pelo peito e pela garganta, e que também doía. Porque a melodia estava no chão, enquanto aqueles acordes quebrados que tecem uma pulsação e um desespero interior ao canto, um movimento contínuo e uma agitação perpétua, na mão direita do pianista, esses acordes estavam nas duas lâminas que cortavam a gaze. Porque todo o corpo da Maria do Mar estava como que inanimado, rígido, por assim dizer, preso, e a melodia era um tapete voador ou talvez um vento em que os pés se montavam, era um vento que seguia rente ao solo e que arrastava tudo o resto, enquanto o desespero transbordava num outro patamar paradoxal, ao nível do coração nos nossos peitos, ao nível das lâminas cortando a gaze - entre a crispação e a leveza.