VII - As performances



A maioria das performances desapareceu, e ainda hoje não descobri porquê.

Quem terá ficado com elas? Ter-me-ão escapado, quando passei tudo o que tinha para A., no meio de tantos caixotes e papéis?

Tantas horas, tantas repetições, tanto trabalho...

Muito antes de ter visto dançar Kasuo Ohno, a Maria do Mar dançava qualquer coisa de parecido e ao mesmo tempo muito diferente.

Quantas vezes destruímos tudo para voltar a começar do zero?

Às vezes, depois de um dia inteiro de ensaios, repetições e gravações, já com as forças esgotadas, a Maria do Mar, ao ver os resultados, só abanava a cabeça e dizia, profundamente abatida:

- Não dá. Não funciona. Não é isto. Não vou conseguir. Nunca hei-de chegar lá.

Porque a velocidade da câmara nos carris não podia ser aquela, mas tinha de ser, pelo contrário, o perfeito equivalente ao sobrevoo de uma certa frase musical; porque os brilhos das luzes na noite não tinham sido verdadeiramente captados, estavam "amputados", dizia a Maria do Mar, como quem vê o seu rosto numa fotografia e sofre uma súbita falta de alma; porque as cores não respiravam e estavam "cortadas", "demasiado planas", "sem diáfano como ao vivo" e a combinação entre texturas não funcionava;  porque, em vez de tenso, ali naquele preciso segundo que era o mais importante o movimento ficara frouxo, "perdera a espinha"; ou porque um plano não tinha a superfície suficientemente lisa, suficientemente acetinada; porque faltara a rigidez ou a suavidade ou o peso num tecido; ou a quase imperceptível elasticidade num pequeno passo...

Mais tristeza não haveria em quem decretasse o fim de uma relação de amor.

A Maria do Mar nesses momentos ficava totalmente intratável, incomunicável.

Era como se desistisse do mundo.

Não sei ainda hoje que força ou que paixão me permitiu que suportasse a angústia de a ver refugiar-se na biblioteca com uma garrafa de Vodka ou de Gin na mão.

Porque nesses dias eu sabia de antemão que a Maria do Mar não chegaria pelo seu pé à sua cama.


Tarkovski, «Stalker» (1979)