XIII - Máscaras funerárias




- Como havemos de despir-nos de nós, do que se acrescenta a tudo?

- (...) 

- Pedra sobre pedra. Passo sobre passo. Tempo sobre tempo. Carne sobre carne. Sonho sobre sonho. Como extrair tantas camadas, limpar tantos estratos e tantos pequenos eus acumulados, António? Como chegar a essa verdade, à verdade total que nos habita? O inconsciente é como uma central nuclear. Temos de entrar armados - e arriscamos a vida. O pensamento estoira como um infinito. E o que se pode sentir do que há para sentir é sempre como uma franja, uma franja tremenda a partir da qual todo o corpo se desagrega - e até a alma nos foge pelo fim dos cabelos e pelas pontas dos pés. Onde iremos nós arranjar os olhos, a visão, a lucidez, as forças e a liberdade com que olhar exactamente nas coisas e em nós o que nelas e em nós haja de exacto ou rigoroso?

- Continua, Maria do Mar.

- Inventamos qualquer coisa para viver ou para continuar a viver, tal como uma criança que inventa um jogo, para passar o tempo. Pensamos: «Vou fazer isto!...» Mas o entusiasmo e a cegueira são de tal ordem que em breve nos esquecemos de que «isto» foi apenas uma invenção nossa. Podia ser outra coisa, em vez dessa. Mas a nossa necessidade de sonhos e a nossa fé no futuro encarregam-se de apagar o que ali havia de arbitrário, de contingente. Agarramo-nos a ideias e valores com a mesma fidelidade e paixão com que nos agarramos à vida, como se as três coisas fossem, afinal, indissociáveis, ou não é? Mas eu coloco uma máscara, António, e o disfarce desloca-me. É por isso que estou a esculpir estas máscaras, para dançar. São inspiradas em máscaras funerárias. Há muitas. Há tantas máscaras... E não é só fazer como um ébrio carnavalesco que faz tudo o que realmente quer porque já é outro e assim já pode desiludir-se mais livremente a si próprio, ao seu público, à sua família e aos seus amores. Não é só dar a si próprio a liberdade de um mascarado, de um anónimo ou de um infiltrado que, fugazmente e à partida, se dê o perdão de um efémero de festa ou de loucura permitida. É muito mais do que isso - é uma ferramenta de exactidão progressiva. Claudicante, condenada - mas inabalável. Uma arma de resistência. E mais ainda. É como um arsenal de exploração. Uma cápsula que permita a navegação no inferno. Um pulmão para as zonas sem ar. Uma asa para o limite da atmosfera ou um blindado que suporte a rarefacção ou a intensidade extremas. Não é verdade que eu podia perfeitamente ser um homem, um rei, um mendigo ou um cavaleiro medieval? São meras circunstâncias históricas. Podia perfeitamente ser aquele louco desabrigado e vagabundo que traz sempre a sua garrafa na gabardina, desgrenhado. Podia, por alguma razão, ter perdido o contacto com a minha dignidade e até matar. Ser toda uma humanidade vulgar... é-me perfeitamente natural. Só a extrema invulgaridade, como a de um Hitler, ou a de um psicopata, se me torna estranhamente difícil, mas não inacessível. É muito mais simples ser um desses cobardes que fizeram parte das suas máquinas infernais. Numa multitude de aspectos, sou muito mais homem que mulher. Talvez comecemos todos por ser homens, por causa de um vício de linguagem, ou pior, por causa de uma tremenda e trágica rede de poderes e de forças. Forças físicas, em primeiro lugar. Acontecimentos físicos, inultrapassáveis, como o de carregar ou não carregar uma criança dentro do ventre. Como poder ser violado. Segurar numa pedra ou derrubar, com um machado, uma grande árvore. Vejo-me muito mais naturalmente como um príncipe no topo do seu cavalo do que como princesa no alto da torre. Ser mulher é um acontecimento intermitente. É como a luz de um farol que aparece a curtos intervalos na escuridão, como o apito da sirene no meio do nevoeiro.  Uma nostalgia timbrada de dor. Um grito infinito. Mas também podia perfeitamente ser uma flor, um lago, uma pedra, uma estepe ou uma borboleta, e isto, sim, isto com ainda maior naturalidade, não concordas?... 

A Maria do Mar podia falar durante horas a fio enquanto trabalhava com as mãos, esculpindo os moldes. Todos os moldes eram rostos - os rostos com que iria dançar. Serviam-lhe de modelos as máscaras funerárias e algumas máscaras feitas a partir de mortos, como as da «Desconhecida do Sena». A Maria do Mar pediu-me também que fizesse um molde do seu rosto, e transformou-o em máscara. Mas aquela rapariga que morrera afogada no Sena e cujo corpo ninguém viera reclamar, cuja identidade ninguém descobrira, em 1880, como pudera fixar no rosto uma tal alegria, na hora da sua morte? Talvez a história fosse inteiramente falsa, de uma ponta à outra. Porque se suicidara? Como é que ninguém a conhecia - e mais: como é que ninguém deu pela sua falta, uma menina que era a própria encarnação viva da graça e da santidade? Era hábito fazer-se dos mortos não identificados uma máscara de morte, para que os familiares pudessem vir a reconhecê-los, quando os procurassem? Não é estranho que Camus tenha encontrado nesta máscara reflexos da Mona Lisa, exactamente do mesmo modo que outros também os encontraram na máscara funerária de Agamémnon, ao ponto de lhe chamarem «a primeira Mona Lisa»? Dou por mim inteiramente absorto na contemplação destes rostos, pedindo-lhes, com a minha insistência, que me desvelem o fundo da sua alma, que me mostrem sem sombras os últimos segundos da sua existência na terra. Tanto que me dizem os músculos destas faces em que não parece haver apenas paz, mas uma mistura de sentimentos mais fina, mais rica, mais contraditória e mais real, como a que se opera em vida... mas é em vão que me demoro e desejo tanto que abram de novo os olhos só para que eu leia neles o que eles viram. Pois não é impossível que seja na hora da nossa morte que dêmos finalmente de caras com Deus.

Dom Sigismundo




- E quanto a Dom Sigismundo - matou ou não matou Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão, no ano de 1149?

- Matou ou não matou - eis a questão.

- Matou?

- Pois claro que matou!... Com um punhal.

- Mas diz-se que não matou.

- O mundo em geral gosta de se escrever ao contrário.

- E porquê?

- Matou-a no alto da torre, na câmara onde se encontravam secretamente.

- Secretamente? Mas Dom Sigismundo não era o marido de Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão, no ano de 1149?

- Não. Dom Sigismundo tinha sido o primeiro amante de Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão, no ano de 1149.

- Tudo no ano de 1149?

- Tudo no ano de 1149.

- Mas se era o amante, porque a matou?

- Porque ela arranjou um segundo amante.

- Mas a que propósito?

- Dom Sigismundo achou que podia matá-la, incriminando o marido.

- Não... A que propósito Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão... era assim tão leviana?

- Não era propriamente leviana... Os casamentos de então assemelhavam-se mais a contratos de compra e venda do que propriamente a relações de amor. Dona Constança rompera com Dom Sigismundo, que a desiludira de muitos e variados modos, e iniciara correspondência com um jovem cavaleiro que lhe dedicava canções de amor.

- Só por cartas, esse amor?

- Só por cartas.

- E mesmo assim despertou a ferocidade de Dom Sigismundo?

- Ah! Claro!

- Os homens!

- Não! A modelo Mayka Kukucova também alvejou o milionário Andrew Bush perto de Estepona quando este apareceu com a sua nova namorada russa de vinte e três anos, Maria Korotaeva!

- E como é que Dom Sigismundo matou Dona Constança Crastina Doroteia Flamulina de Urraca e Aragão, no ano de 1149?

- Usando o punhal e a capa do marido.

- Ardiloso.

- Montou a cavalo, lançou uma corda e içou-se ao alto da torre.

- Destemido.

- Mas levou um dos seus mais faustosos chapéus, e deixou cair uma pena.

- Se era para trepar à torre como um intruso, porque levou a capa?

- Com a capa ninguém deu por ele a cavalo (pensaram os serviçais que se tratava do verdadeiro Duque) - e além disso Dom Sigismundo tinha a esperança de surpreender os amantes.

- Não imaginava que fossem tão castos e que se tivessem ficado apenas por cartas?

- Claro que não. As canções eram demasiado insinuantes, a seu ver.

- E apenas por uma pena, foi condenado?

- Isso mesmo.

- Mas ao jovem cavaleiro, nada lhe aconteceu.

- Nada.

- Por uma pena.

- Por uma pena.

- E o que se seguiu?

- Foi enforcado.

- Mas não poderá o Duque ter roubado o faustoso chapéu de Dom Sigismundo, ao invés de Dom Sigismundo ter roubado a capa do Duque?

- Uma bela capa negra, comprida e elegante.

- E então?

- Eis uma bela pergunta!

- De um só golpe, o Duque matou os dois amantes, e um deles por interposta pessoa.

- Sinistro, mas realmente não sabemos.

- De uma penada!

- Pois, pois...

- E então, sobre Dom Sigismundo - é tudo?

- É tudo.

- Não tem quase lógica nenhuma.

- Nenhuma, mesmo.

- Então as melhoras.

- Espero melhorar.

- Beijinhos à tia.

- Beijinhos.