XXII - O esplendor



- Amo-te, Maria do Mar.

A Maria do Mar estava de costas, com os joelhos na terra, dobrada sobre um canteiro de begónias de que se ocupava naquele momento, com um pequeno sacho na mão. Amava com uma tal paixão  ardente o perfume da terra, amava de tal modo o cheiro das flores e das ervas que nasciam do chão, que era como se estivesse à beira de despedir-se do mundo e fosse perder tudo isso para nunca mais. Mas nada desta paradoxal saudade invertida se mostrava nos gestos tranquilos com que simplesmente parecia aplicar-se na meticulosa tarefa de jardinagem - exactamente com a mesma devoção com que um monge medieval poderia aplicar-se no trabalho de uma iluminura, ou nas orações das horas canónicas.

- Não digas isso, António.

Poderia o telhado da ala norte do solar estar totalmente arruinado - e o gerador eléctrico falhar dia sim dia não. Poderiam as loiças da casa de banho ter o dobro da idade dos que ali pontualmente habitavam - e desfazer-se naquele fino pó, quente e alaranjado, a tijoleira do terraço que percorria toda a zona frontal da grande casa. Poderiam as duas grandes salas guardar intactos os escassos móveis que ali estavam há mais de cem anos, à beira de se perderem no abismo do tempo, num rodopio de poeira  - mas estavam imaculadamente tratados o pomar, o roseiral, os canteiros de flores e a horta.

- Porque não, se é exactamente o que sinto?

- Amamo-nos talvez como duas crianças que brincam juntas durante muitos dias seguidos no Verão.

Quando o António Pizarro, a Maria do Mar, o A., o Artur B., o Orlando I e a Françoise M. se juntavam ali, formavam uma peculiar comunidade, cuja descrição talvez não seja viável.

- Podes falar por ti, Maria do Mar, porque o meu amor não é como o das crianças.

A Maria do Mar parou o seu trabalho, voltou-se e mirou o António de alto a baixo, a sua figura sempre excessivamente esbelta e delicada, elegantemente vestida de calças e camisa de linho branco - velhíssimos, mas imaculados -, ali recortada na brilhante luz do sol, com um balde de cal na mão direita.

- Pode dizer-se que há um excesso de tudo na vida. De cor. De beleza. De abundância. De mistério. De dor. De medo. De alegria. Mas a vida também é terrivelmente ingrata, por vezes. E eu nunca entenderei essa tua alma que é como um lago onde nunca existe uma tempestade. Essa tua fleuma. Até a forma como dizes que me amas é fleumática, curiosamente.

- Eis uma actividade em que jamais teremos um destino feliz: dissertar sobre a natureza dos afectos com que a vida nos trata. Achas que a vida algum dia será uma coisa que caiba numa descrição?... Há quem consiga habitar nessa margem extrema do arrebatamento e da angústia, como tu, nessa margem do abismo em que precisas de correr, de dançar, de ir até ao limite e de escrever sonetos, talvez para respirar... Eu, pelo contrário, tenho este ideal fleumático, este culto de uma espécie de neutralidade ou de indiferença, da subtileza mínima de um grau zero. Gosto de estar na vida como um espectador que está confortavelmente sentado na cadeira de veludo do teatro. Gosto de me distanciar, sentir que vejo tudo de longe. Gosto de seguir as tuas danças com a minha câmara na mão, sem estremecer. E não é propriamente um ideal, no sentido em que não seja uma coisa real. É um acontecimento concreto da imaginação. Um ideal real que inspira uma acção quotidiana, por vezes uma simples postura interior, aparentemente invisível, mas fortemente orientada, como uma meditação ascética, por exemplo.

- O que vais fazer com esse balde de cal?

- Vou pintar o muro baixo do terraço, sentado num tamborete.

- Em parte percebo-te - e em parte não te percebo. Vejo-te já sentado nesse pequeno tamborete, pintando o muro com elegância e perfeição. Que belo quadro, o da tua figura branca que brilha na tarde e onde os pontos vermelhos e redondos das flores das sardinheiras colocam pequenos focos de júbilo e de inocência... Andas por aí, tranquilo, como se habitasses o infinito, com essa altivez aristocrática dos que nunca morrem. Apanhas maçãs no pomar com a mesma graciosidade e gentileza com que dançarias uma valsa no grande salão de um belo palácio. Serás como Lancelot, Galahad, Perceval, capaz de uma espécie de amor que jamais serei capaz de entender?

- Mais como Duchamp.

- Como Duchamp, que amava pintar sobre vidro, na tentativa de preservar os imediatos tons do óleo, as cores daquela hora?... Duchamp, que queria apenas ser um «respirador», um canal para a passagem do ar?... A mim... A mim parece-me que o que não poderá nunca faltar... será o esplendor... Poderei talvez ficar sem os tons originais do óleo, sem nada, absolutamente nada no meu coração e nas minhas mãos, mas acredito que estarei viva enquanto for tocada pelo esplendor, António, nem que seja, durante o dia, por escassos segundos... Mas nesses dias em que as cores não respiram e não cantam, nos dias em que as brumas e as auras das paisagens não são como fibras luminosas da matéria, como sopros dançantes ou partes fulgurantes de um deus vivo, dançarinas mudas desta coreografia tão maravilhosa das visões radiantes... nesses dias é como se fosse um sonâmbulo - morto andante e adiado de uma morte que já se deu por dentro e que em breve se dará por fora. Talvez não saibas o que é estar vivo e já estar morto. Talvez não conheças nada disso. O esplendor podem ser apenas os pequenos focos de luz que brilham na estrada. As amoras quentes que nascem à tarde nas silvas. O nevoeiro. A cinza dos dias. O lusco-fusco ou a silenciosa manhã. A pele macia do corpo. A suavidade da ponta dos dedos. Os pés descalços. Certo mar. O som do vento nas folhas das árvores. Mas, sem o esplendor, o que poderá prender-me aqui?

- Tantas coisas, Maria do Mar... gente.

- Afinal, pensa comigo, António, o que é o esplendor?... Parece que é uma espécie de grande amor não humano em acto e que traz em si uma verdade inquestionável, uma transparência absoluta, que é logo em si um sumo bem, sentido imediatamente, sem barreiras e sem nenhuma questão.

- Só falta Deus.

- O esplendor... e com ele um máximo amor vivo, incompreensível... uma rigorosa transparência... e... quem sabe... talvez nos faltem de facto os deuses... e as almas de todas as coisas.