III - O céu através do telhado





No segundo andar, A Maria do Mar lutava de um modo absurdo contra a água. 

Porque é que ver o céu através do telhado seria mais importante do que restaurar o telhado?

Todos os oito quartos da ala nascente estavam destruídos e por todo o lado as lonas e as chapas onduladas se articulavam para escoar a água, de modo a proteger o primeiro andar, onde dormíamos.

Não vou aqui falar das discussões infindáveis que tive com a Maria do Mar, desde 1986, o ano em que decidiu vir viver com a Francisca para Viana do Castelo.

Várias vezes me dediquei a passear lentamente por aqui, por estes quartos destruídos com as altas janelas sobre os campos, paredes manchadas e telhado inexistente ou esburacado, por onde se entreviam as estrelas fugidias ou as nuvens do céu.

As placas de chapa justapostas e inclinadas, assentes em estacas ou suspensas de cordas, os oleados como panos de tendas ou velas de barcos, aqui e ali, traçando um caminho ou amparando uma desunião e criando como que uma ilusão de vales e de abstractas colinas, toda esta montagem me parecia ser ela mesma a própria parafernália da loucura, a boca de cena de um mundo prestes a ser engolido pelo caos, à beira de um abismo inerte, silencioso e colossal.

A Maria do Mar servira-se amiúde da estrutura de velhos algerozes, que combinara com os edifícios singulares de chapa e oleado, para fazer correr a água.

Que loucura!...

Mas eu, António Pizarro, não só fotografei e filmei a água a correr por esses caminhos delicadamente planeados em dias de chuva, como esperei meses para conseguir gravar o som exacto da água a correr, o som das gotas de água sobre as chapas metálicas e sobre os oleados, entrando e saindo dentro de casa, correndo nos algerozes, o som desta água que afinal entrava e saía com a mesma delicadeza e esmerada educação de um aristocrático e nobre visitante. 

Na ala poente, cujo telhado estava ainda intacto, a Maria do Mar destruíra todas as paredes conservando apenas os pilares de modo a criar um espaço único, tão grande como um armazém. Foi aí que tantas vezes a ajudei na filmagem das performances às quais dedicava horas infindáveis e para cujo financiamento vendera as casas de Lisboa e do Alentejo.

Porque era mais importante comprar metros e metros de gaze de modo a cobrir a estrutura em arame de um ovo gigante, era mais importante comprar tecidos, câmaras, materiais, lâmpadas, holofotes, tintas, vidros, redes metálicas, carris, do que restaurar o que quer que fosse.

- Morremos nós e ficam as coisas. - repetia a Maria do Mar. - Um dia, nem sequer as coisas. Ruem os tectos. Partem-se os pratos. Até para a árvore que vive cinco mil anos a morte há-de chegar. E virá o dia em que o último descendente de cada espécie sucumbirá. Não sobrará ninguém para ler os livros de ninguém, nem haverá ouvidos para as Cantatas de Bach. E nem o planeta girará eternamente em torno do sol, nem as estrelas serão sempre as mesmas no mesmo céu. Nada é fixo. Nada ficará. Que queres que eu faça, António? Que me empenhe durante a vida a restaurar telhados? Prefiro ver o céu através dos telhados. E tu, espera, não te vás embora. Podes segurar na câmara enquanto danço? Ninguém vê melhor do que tu. Não existem olhos como os teus, nem alma como a tua. É um facto.
 




Tarkovski, «O Espelho» (1975)


II - Tarkovski




«- Se eu pudesse, escrevia-lhe uma carta de amor. 

- A Tarkovski?

- Ajoelhava-me à sua frente e abraçava-lhe os joelhos - se eu pudesse - e se ele fosse vivo, escrevia-lhe uma carta de amor.

- Porque não escrever-lhe na mesma, apesar de estar morto?

- Sim. Porque não?... No «Sacrifício», lembras-te de como ele começa pela cena em que o pai conta ao filho a lenda de Ioann Kolov, que foi instruído pelo seu mestre, o monge Pamve, para subir uma montanha todos os dias e regar uma árvore morta que o mestre tinha plantado, e ao terceiro dia a árvore viveu?

- Lembro-me perfeitamente.

- Eu penso que tu és como Alexander neste filme, António. Tudo parece tão idílico. O pai e o rapaz, no meio daquela paisagem extraordinária, no meio daqueles campos tão suaves e tão planos à beira da água, onde as hastes do feno seco parece que dançam e murmuram, como uma extensa alma viva... Pois há esse plano em que se ouve apenas o som do vento a correr sobre o feno... Como é que Tarkovskki conseguiu fixar essa subtileza? Essa infinitude?... A partir desse momento ficamos deitados no chão, no meio do feno. Já não conseguimos sair mais do interior da película mágica. E a casa de madeira isolada à beira do mar e ao lado das árvores, com as cortinas ondulando para fora das janelas abertas... Como amamos esta casa, através da câmara de Tarkovski!... Os alpendres. As cadeiras de verga. As escadas. As ombreiras luminosas das altas janelas. As paredes. A composição dos quadros. A caminha de grades, no quarto do filho, ao lado da pequena cadeira, do espelho e da cómoda. Uma chávena de chá, sobre uma toalha branca, e, ao lado, uma maçã... Andamos por ali e como é agradável e fresca a casa isolada no meio do campo, à beira do mar... Cheira a madeira encerada e a vento suave. Pode-se ficar a ler e a pensar. Tudo é tão belo e tão calmo, são tão românticas as vestes da senhora e da sua filha, com tecidos e drapejados tão suaves e tão principescos que parecem chegados de outras eras, mas afinal, afinal nada é assim tão sereno e tão pouco obscuro, não é verdade? Sem querer, o pai faz jorrar o sangue na testa do filho, ao procurá-lo desesperado no meio das árvores. O Pequeno Homem está mudo e em convalescença de uma operação à garganta. Ele nunca fala. A jovem senhora, muito mais jovem que o seu marido, é tão fútil, meu Deus... E é adúltera, insensível, cruel, descompensada e levemente histérica. A sóbria criada ama mais o filho desta mãe do que ela própria. O médico, gentil e complacente, é o amante da jovem senhora e talvez da filha, enteada de Alexander, com o consentimento ou com a indiferença de ambos. À instável Adelaide, acalma-lhe as crises de nervos com morfina, ou com algum outro opiáceo. Contra a vontade da filha, insiste em drogá-la também, com uma injecção do mesmo veneno. Afinal, que idílio é este? Existe ainda a Maria, a criada de fora que tem um aspecto tão extravagante e infeliz. E como a detestável senhora é cruel com ela!... Meu Deus!... Otto, o carteiro nos tempos livres, dedica-se a coleccionar factos insólitos de que dá um único exemplo. É o daquela mãe que, antes da Segunda Guerra Mundial, decide tirar uma fotografia com o filho antes de ele partir para a frente de batalha. O filho morreu e ela nunca foi buscar a fotografia. Como é possível?... Mas passados muitos anos, vinte ou trinta anos, ela foi de novo tirar uma fotografia, e nessa nova fotografia apareceu o filho tal como estava na última fotografia antes de morrer, exactamente na mesma posição a seu lado e com os mesmos dezanove anos, e ela, já velha, com a idade actual. Não era uma montagem. Não era uma invenção. Otto comprovou cada facto, cada elemento da história, o que lhe deu imenso trabalho. Otto também detesta uma reprodução de Da Vinci que está pendurada numa parede, «A Adoração de Maria». Ele diz que se sente aterrorizado com essa pintura, que Da Vinci sempre o aterrorizou. E na verdade não se trata de uma adoração, a cena que está pintada, mas do retrato terrível da concupiscência sexual do homem pela mulher, esse poderoso dínamo da maldade humana, tão universal... Uma das cenas mais pungentes do filme é quando Alexander comenta em surdina as pinturas medievais ortodoxas de Andrei Rublev, num livro que lhe dão de presente de anos. «Tão sério, tão intenso, tão inocente.» - murmura Alexander, passando os dedos pelas magníficas reproduções. «Quase virginal.» E quando, à hora do jantar, rebenta a notícia de que deflagrou o início do primeiro conflito nuclear mundial, que irá certamente destruir o planeta, é Otto quem vem falar com Alexander. Já não há luz na casa. As telecomunicações estão cortadas. Alexander, que se considerava ateu, ajoelha-se e reza a Deus, pela humanidade, pela casa, pela família e pelo filho. Alexander pede a Deus que tudo fique como estava antes e Otto, a meio da noite, traz-lhe uma solução mágica. Ele precisa de se deitar com Maria, a criada infeliz e extravagante. Parece que ela é uma bruxa, «no bom sentido», e, se Alexander se deitar com ela, tudo voltará a ser como antes. Alexander (e nós conseguimos percebê-lo apenas pela expressão do seu rosto) sente-se enlouquecer. Hesita. Sofre. Por fim dirige-se à casa de Maria de bicicleta, com uma pistola no bolso. Maria levanta-se da cama, perplexa, e lava-lhe as mãos cheias de lama, pois Alexander tinha caído da bicicleta. Alexander toca Bach no pequeno órgão e conta a história do jardim da casa de sua mãe, cuja beleza só compreendeu tarde de mais. Ambos choram. Alexander cortou, serrou, escavou, arrancou e desbastou esse jardim para conseguir arranjá-lo, antes da mãe morrer. Só depois é que percebeu o que tinha feito com o jardim desarranjado e selvagem. Será que a mãe chegou a vê-lo, ao jardim arranjado, ou será que ela morreu com ele, com o jardim bem cortado e bem serrado? O velho Alexander pede a Maria que o ame, mas é recusado. Quando ela se volta, ele tem a pistola apontada à cabeça. Ou ela o ama, ou ele mata-se. E ela acede. Os dois corpos levitam sobre a cama, como que envoltos em feitiço, e, no dia seguinte, tudo volta a ser como sempre. Há electricidade. Estão vivas as comunicações. É de novo o dia de anos de Alexander. E então o que é que ele faz?... Mas tu sabes o que ele faz!... Deita fogo à casa. Impossível descrever esta cena. A casa arde. Arde realmente. A lindíssima casa de madeira à beira da água arde, com tudo lá dentro. A caminha de grades, o espelho, a escada em caracol... A casa arde e as chamas erguem-se ao alto e nós temos medo, mas tanto medo, temos um medo desumano e terrível de que o fogo se propague às árvores ou nos incendeie a nós que já ardemos por dentro do princípio ao fim do filme. Alexander é levado por uma ambulância para um hospital de loucos. Maria segue-o de bicicleta, mas não o alcança, e Tarkovski dedica este que é o seu último filme ao filho, «com fé e com esperança».

- Alexander sacrificou a casa.

- Não. Alexander sacrificou o jardim. Alexander sacrificou Maria.

- E tu sabes que, na primeira filmagem, a câmara encravou, provavelmente com o calor, Maria? Tarkovski insistiu em filmar com uma única câmara, à revelia dos conselhos e da vontade de Sven Nykvist, o co-produtor, e a câmara encravou. Tiveram de reconstruir a casa em apenas duas semanas e refazer a cena, desta vez com duas câmaras. As duas câmaras foram colocadas em carris que corriam paralelos um ao outro e a cena final é a da segunda câmara e dura seis minutos terminando abruptamente porque a câmara gastou uma bobina inteira. E toda a equipa rebentou em lágrimas quando percebeu que tinham conseguido concluir a filmagem.

- Eu sei. E tu sabes que és exactamente como o Alexander neste filme, António?»



Tarkovski, «O Sacrfício» (1986)

Textos de António Pizarro - I



«Quem viesse da estrada principal tinha de cortar à esquerda por um caminho de terra batida que deixava os pneus dos carros cobertos de um pó fino e branco, difícil de limpar. 

Poderíamos imaginar-nos em Itália, nesse longo e estreito caminho ladeado de ciprestes que serpenteava por entre os campos outrora cultivados e onde ao fundo a velha casa de dois andares, longa, com as nove janelas altas dispostas lado a lado na clássica fachada sob comprido, constituía uma promessa. 

Pintada de um amarelo já muito gasto, irreconhecível, toda a fachada se abria sobre o chão de um terraço numa tijoleira muito velha, coberta de um pó alaranjado que se colava aos pés. 

No muro baixo desse terraço é que se erguiam a intervalos regulares as esculturas arruinadas em calcário sobre as quais a Francisca escrevera um poema em «A um Deus Desconhecido», algures entre 1986 e 1989, e, no andar de cima, metade dos quartos não tinha tecto, porque o telhado ruíra. "Prefiro ver o céu através do telhado." Respondia a Maria do Mar quando lhe falavam em restaurar o telhado. 

O mundo não fazia qualquer sentido para a Maria do Mar. Era um mundo absolutamente non-sense, um teatro o mais louco possível. 

O mundo da produção, dos objectivos e das metas a alcançar, o mundo do dinheiro, das massas, do prestígio e da captura de todo o desejo pela medida de uma só e mesma bitola, esse mundo era opaco e totalmente ilegível para a Maria do Mar. 

Na sala de jantar onde comíamos todos os dias, por exemplo, o desejo e a alegria da Maria do Mar consubstanciavam-se em ver aquela rosa branca dentro de uma velha jarra azul, já sem valor (porque as quedas esporádicas ao longo de tantos anos tinham estragado uma parte do discreto trabalho oriental em cloisonné), contra uma parede que estava pintada de vermelho escuro. 

E que o móvel em cima do qual elas estivessem, a rosa branca e a jarra azul, fosse tão antigo que a própria madeira estalada perfizesse a ladaínha surda do tempo contra a morte e que não houvesse ali mais nada, naquela parede e em cima daquele móvel, absolutamente mais nada sem ser o vazio que deixasse falar o vermelho, o azul e a rosa. 

Mas "falar" talvez seja uma má metáfora. O que o vazio permitia era que a intensidade da ressonância entre os espaços e as cores (entre as áreas de cor) vibrasse livremente, sem obstáculos, e esta ressonância ía e vinha, como uma dança. 

Claro que eu, António Pizarro, podia compreender a Maria do Mar e as suas discretas composições de cor e vazio que habitavam tão subtil e elegantemente aquela casa. Não a compreendia, porém, na incoerência que a impedia de vender todas as propriedades arruinadas e de fazer qualquer coisa mais útil e altruísta com o dinheiro. 

"Que sabes tu sobre o que é melhor?... Sobre o mundo?... Não sabes que tu serias exactamente como Alexander naquele filme de Tarkovski, «O Sacrifício»?... Deitarias fogo à tua própria casa depois de tudo teres feito para a salvar, depois de teres sacrificado a própria Maria. E sabes porquê? Porque perceberias de repente que estava tudo errado, que as tuas ideias estavam todas erradas." 

Este tinha sido um dos nossos maiores desacordos, a propósito de um filme de Tarkovski, e era difícil suportar a Maria do Mar naqueles raros momentos de profunda arrogância. Mas embora não a compreendesse em tantos aspectos, podia compreendê-la na paz e na alegria que ela sabia compor a partir das pequenas coisas e acima de tudo com planos vazios, interrompidos, e nas sinfonias de cor com que entrelaçava os afectos subtis e abstractos que me atingiam como corpos, como abraços, e que me provocavam uma tal felicidade, que me traziam uma tão grande paz. 

Talvez por isso eu pensasse tanto na Maria do Mar enquanto traçava os planos para o meu futuro livro - «O Elogio da Frugalidade». 

E talvez por isso a memória desta casa, mesmo depois da trágica morte da Maria do Mar e de todo o espanto e sofrimento que nos causou, não parasse de me assombrar e fascinar, tal como todos esses movimentos perpétuos que obscuramente nos hipnotizam; como os dias e as noites ao longo das nossas vidas; ou como o nosso rosto no espelho, sempre repetido e novo.»

Havia ainda, nessa grande casa
em que vivíamos, eu e Maria do Mar,
uma outra sala, geminada com a primeira,
em frente do terraço, com essas altas portas
envidraçadas que se abriam sobre os campos.
Chamávamos-lhe «Sala dos Nenúfares»,
por causa dessa curiosa pintura circular
que um certo bisavô, porventura excêntrico,
decidira fazer ao longo das paredes,
ocupando-as na totalidade, de tal forma
que os únicos móveis ali expostos,
no centro da sala, deixando livre tudo em volta,
eram dois velhos sofás e uns cadeirões de pele,
já muito gastos e estragados, e inclinados,
e uma cadeira de baloiço, em palhinha, sobre um tapete,
e nada mais, porque a intensidade dessa pintura
enchia todo o espaço de uma excessiva presença.
Tínhamos o hábito de ler, aí, nessa sala,
rodeadas por esse verde meio opaco
que era o das águas paradas de um lago,
aqui e ali, coberto de nenúfares,
essas flores aquáticas que com suave brancura
delicadamente iluminavam a penumbra,
e era tão bom e tão suave esse contraste entre o verde
das águas e o verde das folhas dos nenúfares
quase em forma de coração, sobre elas poisadas,
e era tão bom esse outro rosa das pequenas flores
que caíam, em cascata, das trepadeiras que se erguiam,
ao longo das paredes, enquanto líamos as duas,
em silêncio, confortavelmente estendidas nos sofás.
Do terraço vinha essa suave luminosidade
que nos libertava, e ao longe, sobre as amuradas,
podíamos ver essas brancas figuras humanas
que alguém esculpira em calcário,
agora incompletas, arruinadas pelos anos
que sucessivamente tinham passado,
sem que houvesse um trabalho de restauro.
Numa faltava uma cabeça, noutra um braço,
noutra ainda uma mão, ou um pé,
mas a delicadeza dos suaves drapejados,
modelando os corpos, não se tinha perdido,
nem se perdera essa silenciosa majestade,
essa comovente dignidade da vida que se ergue,
tão frágil, e tão desafiante, no meio do movimento
da matéria que parece um turbilhão, e nessa altura,
enquanto líamos, essas figuras humanas sobre os muros
do que nos falavam era precisamente desta
estranha e curiosa dupla condição
que é uma linha de tensão que persiste
entre erguer-se e estar arruinado.

in Francisca M., A um Deus Desconhecido, Poema XXVI


Tarkovski, O Espelho (1975)