XXI - Nenúfares



 
Mal ou bem, eu e a Maria do Mar sobre o que mais falávamos era de Deus.
 
Talvez porque achasse que a Maria caminhava em linha recta para o desastre, copo atrás de copo, garrafa atrás de garrafa, e pensasse, ou intuísse, que a causa também poderia ser aquela terrível ideia de Deus, ou melhor, aquele vazio de uma ideia de Deus que ao longo de tantos anos a Maria do Mar fora formando, ponto por ponto, degrau a degrau.
 
Nesse dia o que mais me doía, porém, na grande e velha, quase arruinada, sala de estar, eram as saudades de F. de Riverday e a nossa tremenda impotência para a salvar.
 
Embalava-me um pouco na velha cadeira de baloiço, que rangia suavemente, elegantíssima, toda feita em palhinha entrançada, manufacturada com uma técnica que hoje pouco ou nada se domina. A meu lado faziam-me companhia um bule e uma chávena de chá, brancos e azuis, em cima de uma mesa pé de galo. E pensava na F. de Riverday que também gostava de se embalar aqui, há tantos anos atrás, ao lado desta mesma chávena de chá e deste mesmo bule branco e azul, poisados sobre esta mesma mesa pé de galo.
 
A dor tem por vezes contornos súbitos, agudos e insuportáveis. O que nos vale é a nossa memória ser tão tosca e tão esbatida e nos surgir sempre na alma em ínfimas doses e raramente. E o que nos vale ainda mais é a nossa inteligência e os nossos sentidos serem tão pobres e tão limitados, pois de outro modo teríamos de chorar e gemer o dia inteiro e talvez nem tivéssemos forças para nos erguer do leito.
 
Ali estava eu, pois, dando graças porque a viva memória de F. de Riverday era tão fortuita e tão passageira que até já podia pensar noutra coisa, sentir alívio com o calor do chá e preocupar-me com a Maria do Mar que estava deitada no velho sofá, como numa chaise-longue, com o seu copo de vodka com limão e um livro de Kant na mão.
 
O que era mais admirável nesta sala antiga e intocada, tão maravilhosamente parada no tempo, tão falha de modernidade, reparações e renovação, eram os nenúfares que o avô de Maria do Mar pintara, porventura inspirado em Monet, em todas as paredes, do chão até ao tecto.

Por isso não havia mais nada, além do sofá, da cadeira de palhinha e das duas mesas redondas pé de galo. Nem um tapete sobre as tábuas enceradas e corridas, nem uma estante, nem uma fotografia. Nem as amplas portas envidraçadas que davam para o terraço de tijoleira muito gasta tinham cortinas.

Dois candeeiros de pé para ler, era tudo o que bastava nesta sala.
 
Talvez por isto fosse tão fácil adormecer ali, no meio do verde escuro das águas e do branco esbatido dos nenúfares.
 
 
 
 
 
 
 
 

XX - Listas

 
 
 
 
 
1. Afagar e encerar o chão do andar que está habitado.
2. Pintar o muro.
3. Plantar sardinheiras.
4. Podar as roseiras.
5. Escolher um sítio fresco e seco para armazenar as maçãs.
6. Esvaziar e limpar o tanque.
7. Restaurar a tijoleira do terraço.
8. Restaurar as juntas dos azulejos.
9. Esmaltar de branco as madeiras das janelas.
10. Reparar as fissuras do hall.
11. Plantar a horta.






 
 


XIX - O cúmulo da sensualidade




Uma das danças de que mais gostei foi O Beijo.
 
Nada do ouro voluptuoso de Klimt, nada daquela imersão quase patológica dos dois corpos um no outro. Um quadro que sempre me provocou uma espécie de náusea.
 
O nosso beijo nem sequer era uma dança de pares.
 
Filmámos essa dança ao ar livre, no sopé de uma pequena colina verdejante.
 
Não havia música, só o ruído dos pés da Maria do Mar a correr.
 
Ela marcou no chão uma grande, grande elipse, com raminhos de árvore que nunca se viram no nosso filme.
 
Nunca filmámos os pés, nem sequer o rosto de Maria do Mar.
 
O mais difícil foi montar um carril em torno da elipse, por onde a câmara pudesse correr.

A Maria do Mar corria nessa elipse com uma fita das que se usam na ginástica rítmica, para fazer desenhos no ar, uma fita branca que ela deixava voar horizontalmente, atrás do corpo que corria, mas segura pela frente.

Gravámos o som da sua respiração urgente e do restolhar das ervas sob os pés.

Queríamos também gravar o cheiro das ervas e das flores da Primavera, todo esse inebriamento que subia da terra perfumada, o cheiro do suor da pele que brilhava no sol, o cheiro do calor e o cheiro do sol.

Estávamos zonzos de estar ali, no meio do esplendor.

A Maria do Mar tinha umas leggins e um pequeno top, só para segurar o peito. E a sua pele respondia ao sol com emissões de ouro.

Corria para fazer aquela linha de velocidade e tensão que desenhava com fita cortando o ar, aquele fluxo.

Isso é que era um beijo.

No fim, esticados sobre a relva com os livros perto de nós, conversávamos.

- Lembras-te da Eudora Welty, daquela passagem sobre as peras?

- Qual?

- Quando ela diz - olha aqui (e a Maria do Mar abria as páginas): « Por instantes, com as suas mãos poderosas, Nina reteve o barco. Pensou de novo numa pêra - não nas peras do dia-a-dia, de polpa granulosa, penduradas na árvore do quintal das traseiras, mas nas peras requintadas que se vendem bem caras nos comboios, embrulhadas em cones de papel. Belas peras, simétricas, lisas, de casca fina, com uma polpa branca como a neve, tão sumarentas e tenras que, quando se trincam, salpicam a cara toda, e tão delicadas que enquanto se come a primeira metade muito depressa, a segunda escurece logo. Fugazes são os frutos, não as flores, pensou Nina - quando estão no ponto e começam a estragar-se.»

- Fugazes são os frutos, não as flores...

- Esta descrição, António, não é o cúmulo da sensualidade? É impossível conseguir mais.



 
 
 
 

XVIII - Confissão




Estes textos são um epitáfio. A. sabe-o. Quem mais o sabe? A velocidade do tempo é cruel. Avança a direito em linha recta - o tempo. E o tempo desaparece. O que são as nossas vidas? A memória é mais fugaz que a poeira da Primavera, misturada com os pólenes. Tudo o que agora posso fazer é este epitáfio. O epitáfio de todas as danças da Maria do Mar. Não me curo da revolta por a Maria do Mar ter feito o que fez. Ela que tanto condenou a F. Riverday por ter feito o que fez, e que inclusivamente escreveu: «Não tinha o direito de se subtrair a esta vida.». Como poderei perdoar-lhe?

Escrevo estas palavras como quem martela na lápide os entalhes. E esta escrita, este entalhe, é só uma expiação. Se as minhas mãos ficarem em sangue, será possível que uma nova dor me redima. Tantas, tantas vezes o fazemos. Curamos uma dor com outra dor. Cercamos uma dor de muitas dores, purgamos a dor com a dor, e aprendemos a entrar e a sair dos nossos estados de alma como quem entra e sai de uma paisagem, como um faquir.

Assim como as árvores se erguem majestáticas em redor de uma clareira, assim como as velas acesas em torno de um grande candelabro circular, assim estas novas dores compõem uma coroa paradoxal, a dos espinhos que se ferram na nossa cabeça com um prazer desconhecido e secreto - o da libertação.


 

XVII - Gloria - Domine Fili Unigenite





Foi uma das danças que mais trabalho burocrático nos deu. A Maria do Mar exigiu aquela fonte em frente do Mosteiro dos Jerónimos, e tinha de ser na Primavera - e a fonte tinha de ter todos os jactos de água em funcionamento, o que só acontece nos Domingos e dias de festa. Precisámos de uma autorização da câmara e da polícia de segurança pública, para limitar o espaço. Quem éramos nós?... Uns extravagantes?... Foi preciso construir, montar e articular os longos carris, em torno da amurada da fonte, por onde corria a câmara. Mas a dança era de uma simplicidade pungente, quase infantil. A Maria do Mar apenas andava sobre a amurada da fonte, os pés tão brancos como o calcário da amurada, pintados com um pó que os fazia parecer de estátua, e o plano não mostrava mais que até meio da perna, antes do joelho. Os pés andando sempre em frente e ao lado a água azul tão brilhante que não parecia do mundo, mas de um ultra-mundo. E como a câmara tinha de acompanhar a velocidade do corpo da Maria do Mar, que acompanhava a da música exactamente como um curso de água acompanha o seu leito na rocha, na areia, ou na terra, tivemos de acoplar ao seu corpo um engenho que nos deu muito trabalho a inventar, pois a câmara não podia tremer, tinha de compor uma linha, e, no entanto, seguir a Maria do Mar como se fosse parte dela, como se fosse uma mão ou um braço, como se fosse o seu estômago ou o seu peito. Os pés da Maria do Mar eram leves, eram realmente leves, pois entravam naquela linha do ritmo ternário que fazia cair o peso alternadamente em cada um dos dois pés. Um, dois, três. Um, dois, três. Direito, esquerdo, direito. Esquerdo, direito, esquerdo. Era todo um estado de graça, essa passagem pendular, subtil, que transferia de um lado para o outro lado do corpo o acento eufórico e ascendente daquela música, o punctum na linha, um faiscante estilhaço de celebração.

- Não te incomoda, a ti que não tens o Deus de uma religião, o termo «Filho Unigénito»?

Não a incomodava. O que para os outros seria uma incoerência, um problema, uma dificuldade, para a Maria do Mar pouco valia, ou não valia nada. Acima de tudo sobrepunha-se o entusiasmo, a paixão repentina e inabalável por uma visão, por um projecto, por qualquer coisa que ao seu ouvido e ao seu olho, simplesmente, batia certo.

- Ah!... - exclamava ela quando ao fim de muitas buscas encontrávamos algo que a satisfazia. - Isto bate certo!...

- Bate certo com o quê, Maria do Mar? 

Com qualquer coisa que via, parece, por dentro dos olhos. Não podia explicá-lo. Não podia descrevê-lo. Nunca sabia que chegava, antes de ter chegado. Nunca sabia se estava perto ou longe. Com que plano poderia evoluir. O que ela queria da água era aquela superfície lisa acetinada e brilhante, carregada de luz e de azul, praticamente irreal. O que ela queria da pele era aquele aspecto de continuidade entre a carne e o calcário.

- O meu deus não se incomoda com nenhum nome, porque participa de uma imensa e variada celebração. Mas que triste ter de dizer "não se incomoda". É uma expressão grosseira, demasiado humana, imperfeita e tosca, na verdade, grotesca... Porque havemos de falar do que não podemos falar?

- Gostava de perceber este Deus.

- Impossível percebê-lo. O bem e o mal são só nossos. A coerência é só nossa. O infinito é só nosso. As palavras são só nossas. A vida e a morte são só nossas. 

- Talvez prefira o deus de Espinosa ou o deus da Françoise M.

Havia três planos a compor, intervalados com a dança dos pés da Maria do Mar, mas em que a câmara seguia com a mesma velocidade, o que não foi fácil de alcançar. Um deles era um renque de flores amarelas que a câmara percorria num carril rente ao chão, num dia de muita luz. O outro era, na berma branca da calçada molhada pela chuva, de noite, essa corrente brilhante da água que corre entre o passeio e a estrada, imprevistamente colorida, aqui e ali, pelas luminescências ácidas das luzes de néon que emplumam os estabelecimentos. Tivemos de esperar pela chuva, pelas noites, pelos néons.

- A sumptuosidade da luz. 

- Como poderás sobreviver a um deus com quem não podes falar, Maria do Mar?

- O que nos destrói não são os deuses, mas os nossos defeitos de carácter. Sabes o que um dia te destruirá, meu amigo? Essa necessidade de compreender tudo, essa exigência de certezas, essa paixão pela estabilidade. Precisas de chegar a um porto seguro, mas na vida não há portos seguros que para sempre nos abriguem, como por vezes gostamos de sonhar... E a mim, também a mim, que falo agora do alto, sabes o que um dia acabará por me destruir, sem qualquer remédio?... O futuro de facto não apresenta grandes mistérios, quanto a estas questões. A mim o que um dia me deitará por terra será um só e apenas um defeito de carácter. O orgulho.

No final da dança havia um corte. Passava-se da música para o som dos jactos de água da grande fonte, esse som avassalador e total, cujos elementos mínimos, como tão bem verificou Leibniz, somos incapazes de distinguir, mas cuja totalidade nos invade talvez de um modo idêntico a como nos invadem os intervalos do vazio entre os átomos que compõem a nossa carne.

E o plano era só espuma - essa espuma.





 

XVI - Domenico e Veronique





- Aqui está. Vamos ler.

- Mostra.

- «Que antepassado fala em mim?... Não posso viver simultaneamente na minha cabeça e no meu corpo. Por isso não consigo ser apenas uma pessoa. Posso sentir-me uma infinidade de coisas ao mesmo tempo. O verdadeiro mal do nosso tempo é já não existirem grandes mestres... O caminho do nosso coração está coberto de sombra... É preciso escutar as vozes que parecem inúteis!... É necessário que nos cérebros ocupados pelos longos canos de esgoto, pelas paredes das escolas, pelo asfalto e pelas práticas assistenciais, entre o zumbido dos insectos, é necessário encher os ouvidos e os olhos de todos nós de coisas que sejam o início de um grande sonho. Alguém deve gritar que iremos construir as pirâmides!... Não interessa se as construiremos. É necessário alimentar o desejo. Devemos esticar a alma por todos os lados, como se fosse um lençol dilatável ao infinito... Se quiserem que o mundo evolua, temos de estar de mãos dadas, devemos misturar-nos, os que se definem como sãos e aqueles a quem chamam doentes. Ei!... Vocês!... Sãos!... O que significa a vossa sanidade?... Todos os olhos da humanidade estão a olhar para o precipício para o qual nos estamos todos a dirigir... A liberdade não serve para nada se não tiverem a coragem de nos olhar nos olhos, de comer connosco, de beber connosco, de dormir connosco. São os chamados sãos que têm levado o mundo à beira da catástrofe. Homem!... Escuta!... Em ti!... Água!... Fogo!... E depois... A cinza... E os ossos dentro da cinza. Os ossos e a cinza!... Onde estou, quando não estou, nem na realidade, nem na imaginação?... Estipulo um novo pacto com o mundo: que haja sol de noite e neve em Agosto. As coisas grandes acabam, são as pequenas que duram. A sociedade deve voltar a estar unida e não tão fragmentada. Seria suficiente observar a natureza para perceber que a vida é simples, que é necessário retornar ao ponto anterior onde enveredámos pelo caminho errado... É necessário regressar às bases fundamentais da vida, sem sujar a água!... Que raça de mundo é este, onde é um louco que vos diz que devem ter vergonha?... Música agora!... (Esqueci-me desta...) Oh mãe!... Oh mãe!... O ar é uma coisa ligeira que gira em torno da cabeça e que se torna mais claro quando ris...»

- É o discurso de Domenico, no topo do cavalo de bronze, antes de se regar com gasolina e lançar fogo a si próprio?

- Mas ele não fala, António. Ele grita.

- Domenico está cheio de frio.

- As pessoas, paradas na escadaria, debaixo das arcadas de pedra, não parecem ter frio.

- Uma gorda com um capacetezito de mota, com as pernas enroladas num cobertor.

- Velhos, jovens, pessoas de meia idade...

- Um louco de pijama. Uma freira. O cão.

- Uma rapariga com um colete de pele, collants castanhos e sandálias de salto alto.

- Uma gordinha de totós e sorriso alvo.

- Todos parecem estar tão sós.

- «Non siamo matti siamo seri» - é o que está escrito nas bandeirinhas atrás.

- Não somos loucos. Somos sérios.

- Trocaste portanto a última frase por qualquer coisa que era: ««Mãe, quando tu ris o ar fica mais ligeiro em roda da tua testa e parece que à volta tudo aclara»?... Mas pode dizer-se que o essencial ficou lá, na tua memória, Maria do Mar.

- Sim, pode. Mas o movimento é diferente.

- Mas, no caso de: «Não posso viver simultaneamente na minha cabeça e no meu corpo.» e: «Onde estou, quando não estou, nem na realidade, nem na minha imaginação?» é muito curioso. Fizeste uma espécie de cruzamento quiasmático entre as duas frases, e trocaste tudo.

- E a que me tilintou na cabeça com um som de Fernando Pessoa, nem sequer foi a primeira, como vim a acreditar depois mais tarde... Foi a segunda... Primeiro procurei-a e, por fim, passados uns dias, transformei-a... Sem querer, claro...

- Acoplaste cabeça com imaginação, e realidade com corpo?

- Exacto. Do que me lembrava era: «Onde estou, se não estou, nem na minha cabeça, nem no meu corpo?»

- E o discurso de Verónica?

- Eis o discurso de Verónica, na trigésima nona sessão com a Gisela Pankow. Vou traduzir do francês: «Não posso viver ao mesmo tempo dentro da minha cabeça e dentro do meu corpo. É por isso que não consigo ser uma só pessoa. Quando estou dentro da minha cabeça, esqueço-me imediatamente do meu corpo. (Silêncio.) Tudo depende da atmosfera em que me encontro. (Silêncio.) Sou capaz de sentir uma multidão de coisas ao mesmo tempo. Sou incapaz de perceber quem sou. (Silêncio.) É possível que eu possa fazer qualquer coisa. Eu sou a coisa que eu vejo. Mas essa qualquer coisa pode viver ou ser apenas um objecto. É por isso que me sinto sempre cansada. (Silêncio.) Tudo me interessa. Não há nada que não me interesse. (Silêncio.) Eu não estou morta. Eu estou viva, você sabe. O mais belo dia da minha vida foi o dia em que se passou o seguinte. Nós tínhamos mudado os móveis e, sobre um móvel, vi esgueirar-se um caranguejo azul. Tive a impressão que vivia dentro do caranguejo azul. Os seus movimentos eram extraordinários. (Silêncio.) A minha mãe, muito tempo depois, dizia que nunca vira os meus olhos brilhar daquela maneira. (Silêncio.) O seu corpo vibrava todo inteiro. Oh!... E aquelas pinças maravilhosas!... Como ele as manejava!... Formidáveis. (Silêncio.) Não. Eu não sou uma morta. (Silêncio.) O meu séquito pode destruir-me. É por isso que me acontece ter este aspecto bizarro. Quando a atmosfera que me rodeia é boa, sou transformada de um só golpe. (Silêncio.) Um dia o meu pai bateu assustadoramente no meu irmão. O meu pai não sabia o que fazia. O seu pai também batia. Eu detesto o meu pai porque ele bateu no meu irmão até ao sangue com uma correia de nylon. (Silêncio.) É perigoso irritar a minha família. Eles tornam-se perigosos. (Silêncio.) Eu tenho medo do meu pai. E no entanto, era a mim que ele preferia.»

- Impressionante... E o caranguejo azul... Mas qual de nós, qual de nós será realmente capaz de perceber quem realmente é?

- Hei-de trazer-te um outro discurso, tão impressionante como este.

- E qual de nós não se transforma de um só golpe, quando a atmosfera é boa?

- É impossível não gostar de Verónica, é impossível não ficar próximo dela.

- Mas ela passa da cabeça para o corpo, e do corpo para a cabeça, enquanto tu, Maria do Mar, quando dizes que não estás, nem no teu corpo, nem na tua cabeça, na verdade, sem querer, dizes que não estás em lado nenhum.

- É.

- Essa maldita linha de abolição... é insuportável para quem a contempla.

- Não posso parar, António.

- Obrigas-me a sair desta casa.

- Não olhes para mim. Até o nome é expressivo, já reparaste? Verónica.

- Não podes dizer qualquer coisa?

- Que queres que diga? Sou só mais um desses miseráveis que não conseguem parar.

- Que faças uma promessa.

- Não posso.

- Então, que procuras?

- Esse lençol dilatável ao infinito, essa alma sem limites. Porque eu já lhe toquei, António... Já vivi lá. Um curto tempo, sim, mas já singrei nessa nave... O tempo é cada vez mais curto... Pergunto-me... porque é que o tempo é cada vez mais curto?... Porque é que o voo é cada vez mais breve?... Em vez de avançar, parece que ando para trás... E é verdade... Hoje o primeiro sobrevoo parece-se mais com uma queda infinita, sem graça, nem som... Lanço-me - e logo caio. Mas eu hei-de reencontrá-las, essas sensações perdidas, esse ecstazy e, mais do que tudo, essa vida subatómica. Não preciso de mais nada. Apenas dessa velocidade e desse calor, dessa respiração infinita.

- É por isto que arriscas a própria vida, Maria do Mar? É por isso que deitas tudo a perder? Não compreendo.

- Prometo. Trago-te amanhã o segundo discurso de Verónica.

- Amanhã é possível que já não me encontres. Vou-me deitar.


Tarkovski, «Nostalghia» (1983)


XV - Nostalghia




- O que é que é mais impressionante em «Nostalghia»?

- Talvez os cabelos de Domiziana Giordano.

- Ah!... Esses cabelos!...

- São a quinta-essência da volúpia. Ou a volúpia em si.

- Fazem-nos pensar na Vénus de Boticelli, naquelas espirais louras que são como torres de um outro reino, circundadas por escadarias que nos levassem ao céu, mas porquê?

- Sim, também te pergunto, Maria - porquê? É realmente estranho que te lembres de Boticelli. Boticelli não tem nada dessa textura. Não tem nada dessa específica suavidade. Verdadeiramente equivalente, que me lembre, só os pinheiros mansos dos climas meridionais, num dia de Primavera.

- A memória é estranha. Cheia de alçapões, de bifurcações. Mas não concordo com a tua ideia de suavidade. Boticelli é isso mesmo, um mestre da suavidade. As combinações de cores, a mistura entre o ouro e o azul, primam por uma suavidade inigualável. Suave, mas sem perder a força. Deve ser esse o nó da minha associação involuntária.

- É possível, sim. Vendo bem, é possível... Mas outra coisa impressionante é a água e a humidade que se infiltram por todo o lado. A neblina. O nevoeiro. Os vapores que se levantam da piscina de Santa Catarina, onde se banham os turistas. A casa onde vive Domenico, o louco, e onde chove por todo o lado. Faz lembrar o segundo andar desta casa.

- Que exagero!...

- O mais impressionante é a auto-imolação de Domenico, quando pega fogo a si próprio, no topo do cavalo de bronze, no meio da praça.

- Não concordo. O mais impressionante é a indiferença das pessoas que estão a ver a auto-imolação de Domenico - e a angústia do cão que está preso por uma trela a um poste, e não consegue soltar-se.

- Indiferença... ou estupor... mas é verdade... Essa cena é insuportável... Ao vivo é uma cena impossível de suportar. Passei metade do tempo de olhos fechados. Só a vi por relâmpagos... porque os sons me entravam nos ouvidos... não podia escapar.

- Estou a pensar, António... Não é tão estranho que a nossa memória esteja cheia de erros, de armadilhas, de ilusões e de certezas que mostram mais o mapa da nossa alma que o da realidade?... Quando Domenico grita, no alto do cavalo de bronze: «Onde estou, se não estou, nem no meu corpo, nem na minha cabeça?...» - achei que era uma frase de Fernando Pessoa. Mas será que a frase é mesmo assim, como me lembro dela agora?... Quando chegámos ao fim do filme e observei que Tarkovski o tinha dedicado à mãe, lembrei-me de uma outra frase de Domenico que primava pela vividez do movimento e pela percepção fina, liberta, quase infantil. «Mãe, quando tu ris o ar fica mais ligeiro em roda da tua testa e parece que à volta tudo aclara.» Não deve ser exactamente isto, também... Mas o meu amigo, com quem então vi este filme, não reparara na frase e voltou atrás para poder ouvi-la. Eu sabia precisamente onde ela estava, a frase lindíssima, a pura, cândida, inesperada e fortíssima declaração de amor. Antes de Domenico acender o isqueiro. E o mais curioso de tudo é que  pensava estar a ler as legendas sem ligar assim tanto ao italiano, que é uma língua que nem conheço... mas, pelo contrário, o que é que tinha acontecido?... Nas legendas vinha «o ar fica mais leve» e «em torno da tua cabeça», enquanto a minha memória tinha agarrado no italiano o «leggero» e a «testa» que logo transpôs para o português e que são palavras tão vivas, tão puras e mais: tão sonoramente expressivas. «Leggero»!... «Testa»!... Nem sabemos o que vemos, nem o que ouvimos, António. O mundo passa por nós numa torrente tão veloz, tão infinitesimal, tão infinita... e estamos mergulhados na realidade como um grande iceberg que atravesse a terra deslizando em incógnitos mares gelados, absurdo e inerte. A maior parte de nós e de tudo, nem a sabemos, mas até a fixamos, por vezes, até a transpomos, transmudamos... Não é assustador?... Uma parte do que percebemos, não chegamos sequer a senti-la... E lembramo-nos de coisas em que não chegámos a reparar...

- O pensamento anda mais rápido do que as nossas ideias... A percepção é muito mais rápida do que o raciocínio... Como os nossos raciocínios são lentos!... O que sentimos é mais veloz do que a luz, e tão micro-matizado como ela. Ondeia atrás da nossa alma como uma cauda de noiva, que a alma arrasta mas não vê. Se ouves o som do mar, esse som imenso, amplo, deve ser porque guardas ou apanhas em ti todos os micro-elementos de tantas ondas, tantas gotas, tantos ínfimos fios de água. Mas como? É um mistério.

- Quanto à frase de Pessoa, eu sabia que tinha lido essa frase algures, sabia que essa frase era uma citação, que não tinha nascido naquele filme e além disso sabia o quanto em tempos ela me impressionara. Para mim essa frase vinha com aspas. Mas troquei quase tudo, António... A frase não era de Fernando Pessoa. Procurei-a durante horas, e, por fim, como não a encontrava, lembrei-me de um pequeno livro de capa amarela sobre esquizofrenia e psicose, que tinha lido há já vários anos. Assim, do nada, apareceu-me no pensamento a imagem do pequeno livro, sem título nem autor, mas que de repente eu sabia ser o portador da pequena frase e cujo lugar na estante me lembrava com precisão. Fui buscá-lo. Intitula-se «L'homme e sa psychose» e é de Gisela Pankow, uma neuro-psiquiatra e uma psicanalista francesa de origem alemã, que morreu em 1998.

- Tarkovski e Tonino Guerra tinham andado a ler a Gisela Pankow?

- O livro é de 1969, o filme é de 1983. Mas não achas que seria também natural terem andado a ler Fernando Pessoa?... Pankow liga a esquizofrenia e a psicose a uma perturbação na relação com o corpo habitado, o corpo vivido. Mas ela começa por identificar a possibilidade de abandonar o corpo próprio como uma força, como uma vantagem, como uma arma de sobrevivência. É o caso de Cayrol, um prisioneiro de um campo de concentração que descreve nos seus escritos que, quando era chicoteado, já não estava no seu corpo - estava na velha macieira do seu jardim... Literalmente. Para Pankow, a diferença entre a saúde e a insanidade está só na possibilidade de regresso. Regresso ao corpo vivido. Ela chama, a esta capacidade de abandonar o corpo próprio para se refugiar noutras maneiras de ser, «fenómeno do corpo perdido». Ora, o que é realmente notável é como, mais do que interpretar (de uma maneira selvagem), ela observa. Mais do que perceber causas e significados, ela descreve com minúcia, com atenção, diria mesmo, com profunda empatia, e, se é que é possível falar destes valores sem a patine de hipocrisia social que entretanto se lhes foi colando, compaixão, solidariedade, humanidade. O livro de Pankow está cheio de fragmentos de discursos verdadeiros, e esta frase é de Verónica, uma rapariga de vinte anos, toda muito miudinha, inquieta, com um olhar fixo e distante. Então começo a ler e descubro que há muito mais frases de Verónica, no discurso de Domenico. O discurso de Domenico, no topo do cavalo de bronze, está todo salpicado de frases de Verónica. E porquê? É certo que devo estar a lembrar-me com muitas falhas. Parece que, sem querer, misturei tudo. Verónica pergunta: «Onde é que estou, já que não estou, nem na minha imaginação, nem na realidade?» «Onde é que estou então?» «Na angústia?» E afirma, a dado ponto: «Não posso viver ao mesmo tempo na minha cabeça e no meu corpo.» António, é verdade, os discursos de Verónica, gravados palavra a palavra pela Gisela Pankow, são impressionantes. Há qualquer coisa neles que transcende tudo e que se mantém para lá da cena psicanalítica, com uma força intacta, tremenda, uma força universal, ainda por compreender e abordar.

- E, tanto quanto tu, parece que Tarkovski e Tonino Guerra foram atingidos pelas palavras de Verónica.

- Parece.


Tarkovski, «Nostalghia» (1983)










XIV - Da arte para a vida, e vice-versa




Não há nada como estar na cozinha a fazer compotas, bolos, ou pão. E principalmente nesta cozinha antiga de paredes quadriculadas em branco e azul, chão de mármore, altas portas de vidro sobre o pomar e a horta e cujos móveis de madeira a Maria do Mar pintou e restaurou. Páro durante longos segundos. Penso como se fosse uma câmara de filmar. Acho que eu, António Pizarro, não sou mais do que uma câmara de filmar!... A Maria do Mar haveria logo de perguntar-me o que era isso, que coisa era essa, e eu dir-lhe-ia: «Recortar, olhar com moldura, ver como num plano.» Ah!... Mas isso é sempre!... Diria ela. Recortamos sempre. Vemos sempre com uma moldura. Olhamos sempre como num plano. Mas não. Nada disso, diria eu. Isso é só uma primeira impressão. Na verdade, uma milésima impressão. É um hábito de ter visto demasiado cinema. Para cortar o mundo é preciso parar, estacar, suster a respiração, travar o ritmo com que bate o coração e escolher o trilho por onde segue o olhar. Não virar a cabeça, não rolar os olhos, quase não mexer as pernas (ou melhor, não deixar que nenhuma extremidade da alma se agite, como a cauda de um peixe, por dentro da nossa atenção) e, principalmente, não deixar que o infinito nos flua pelas pontas dos cabelos, como acontece habitualmente. Ao contrário dos planos, das molduras, das visões limitadas, nós os vivos estamos sempre a meio do diáfano - e o infinito enreda-nos de mil modos. As estrelas e os abismos dos céus não polvilham apenas os nossos sonhos e a nossa imaginação. A toda a hora se debruçam sobre as nossas cabeças e corropiam debaixo dos nossos pés. Para limitar é preciso uma máquina. E com a crueldade, a força e a precisão da máquina isolar; extrair; abstrair. Assim eu focava o quadriculado dos azulejos com um plano imóvel do meu pensamento, uma esquadria rigorosa, extraindo deles só aquele brilho acetinado que resultava de estarem tão limpos e, para além de lavados, polidos com um pano seco. Nesse plano a Maria do Mar nem se movia já, com o seu avental branco, tão estranho que era, demasiado limpo. Ela detestava roupa suja, nódoas, panos manchados. Ficara de lado com um grande pedaço de abóbora na mão esquerda e uma faca na mão direita, manchada de laranja. A Maria do Mar contra o quadriculado branco e azul, semi de lado, meio de costas; e tinha uma saia larga, comprida, de linho branco, uma camisa de tule, larga e vaporosa, um pouco transparente, de mangas dobradas, arregaçadas, e os pés descalços, que se viam sob a baínha. Inclinado, o rosto escondia-se atrás dos seus cabelos e, por mais que ela cirandasse, para cá e para lá, era assim que eu a fixava. Entre o brilho de um Vermeer e o inédito de um pintor por descobrir, entre o abstracto dos azulejos e o concreto de um legume. E enquanto ela pesava o açúcar amarelo, cujo perfume adocicado e inconfundível se espalhava no ar, eu partia as nozes em cima da mesa e que depois seriam misturadas no doce de abóbora. Que luxúria comer depois este doce com um requeijão do Senhor Chico!... Que manjar dos deuses!...

- Por exemplo, tens uma maçã de Cézanne, e passas para aquela maçã, que agora consegues ver melhor, depois de ter visto a maçã de Cézanne. Sem Cézanne, a maçã passava-te ao lado.

E a Maria do Mar apontava para uma maçã que ficara sobre a pedra da bancada.

- E há-de haver alguém que verá a maçã como nem Cézanne nem ninguém ainda viram, e por isso essa outra maçã continua a passar-nos ao lado, apesar de estar lá, certo?

- Ou as estrelas de Van Gogh.

- E as outras estrelas - as estrelas que ainda não encontraram o seu pintor.

- Cézanne descobriu que não há verdadeiras fronteiras entre os corpos, que todas as linhas são infinitesimalmente porosas, abertas, entretecidas e sobrepostas umas às outras, em sucessões de transparências, e que todas as superfícies são como gazes, esburacadas. O que é um facto da matéria.

- É verdade.

- Como é que vês a sombra de uma luz na parede vermelha da sala, um quadrado de sol brilhando no soalho, dividido entre o chão e o tapete, depois de Rothko? A toda a hora descobres as sinfonias que se fazem nas fronteiras entre duas bandas de cor. A toda hora esbarras com encontros que são como a fundamental e a terceira e a quinta e a sétima de um acorde, diferentemente matizados, e para um mesmo som, quantos voos em direcções distintas!...

- De facto...

- Depois de Mondrian, depois de Miró, guias um carro numa estrada e vês quadradinhos e círculos a dançar por todo o lado, e à noite, vês tantos pontinhos flutuantes que, mesmo que sigas em frente muito triste, de regresso a casa, já só consegues sorrir...

- Isso depende da bondade do condutor, Maria do Mar.

- E assim passas de um quadro para a vida, e da vida para um quadro, e a toda hora, de um modo involuntário, inevitável, tropeças em ambos, nos quadros e na vida, de certo modo, linearmente.

- De certo modo. Porque, em parte, a vida não se mostra antes que alguém a veja.

- Ai!... Esse «em parte» salva-te de tudo, António!... Ou num poema. Passas de um poema para a vida, e da vida para o poema... Porque muito do que aí se passa se vê como num quadro, ou como num filme. Como a pintura, a poesia, já dizia Horácio, e tão bem. E parecem trechos do mundo que desfilam a toda a hora, os versos.

- É mais complicado, Maria do Mar. Se for um poema em kikongo-kituba será para mim o mesmo que andar numa estepe de olhos vendados. Não verei nada. E sou um homem. Quer dizer... sou humano...

- Mas se for um poema em kikongo-kituba dito em voz alta hás-de saber, mesmo sem perceber uma palavra dessa língua totalmente estranha, qual a hora do dia em que se encontra a alma do poeta, e já começarás a ver alguma coisa. Porque se o andamento for rápido e a timbre da voz for transparente, alegre, esperançado, será sempre de manhã. Mas a velocidade cairá com o andar das horas e do entardecer para a noite passarás de um andante para um adagio e, já noite avançada, para um largo. Cada velocidade terá uma cor, uma hora do dia ou da noite, um peso, uma matéria. Não há como escapar.

- Cada língua tem as suas melodias, as suas cadências, os seus ritmos prosódicos, os seus intervalos predilectos, as suas velocidades e os seus timbres aos quais cada tribo atribui, cada uma a seu modo, uma diferente subtileza. Como estrangeiro não passarás de um humano a farejar o trilho de um cão. Dessa miríade de cheiros diferentes e plurifacetados que para ele talvez sejam como ler um romance de Kafka, ou receber as últimas notícias de por onde andou a sua amada, ficarás com apenas um sinal - o entusiasmo do cão. O faro não é coisa de humanos.

- Não vamos discutir, pois é tão óbvio. Só estou a temperar o teu exagero com um pouco de bom-senso, porque não é verdade que algum dia pudesses estar diante de um poema como um vagabundo deambulando numa estepe, de olhos vendados.

- Já estás a acrescentar... e contradizes-te, Maria do Mar. Comparas a poesia à pintura, quando afinal do que estás a falar é de música!

- Ah! Sim! Pois claro!

- Pois claro?!

- Mas que chatice!... Estar sempre de acordo consigo próprio!... Pois não é evidente que a poesia está a meio caminho entre as duas coisas, entre a música e a pintura?... Só que a música não se encontra em lado algum, no mundo, a não ser no corpo - e nas almas dos homens. Talvez seja o corpo que se vira no avesso, e assim nós trazemos para o mundo a sensação esculpida no som, inserida no real, feita coisa. É que a música não imita mesmo coisa nenhuma que esteja cá fora. Mas traz-te a alma inteira à vista até com aquilo que não sabes ainda nem pensar nem nomear.

- E portanto só podemos concluir que o Horácio falou de um modo muito tosco, muito incompleto.

- Como a nossa conversa é absurda, António!... Não chegamos a lado nenhum!...

- É só uma maneira de ir partindo nozes, Maria.

- É que aquela neblina ali ao fundo, António, aquela neblina mágica que envolve hoje o pomar e que parece que sobe da terra, como se a terra respirasse, essa neblina hoje passa por mim mas através de Tarkovski... e passa por mim cambaleando e ardendo e aperta-me o coração com uma tal nostalgia, uma tal mágoa... Porque há sempre um excesso de álcool em Tarkovski, um desequilíbrio, um passeio de bêbado pela franja dos precipícios, à beira dos abismos, uma dilaceração entre a fé e o vazio, entre a esperança e o absurdo, entre a beleza e a loucura, e hoje a neblina enfeita-me a alma como a uma antiga rapariga holandesa uma touca engomada pudesse coroar a cabeça... Tem qualquer coisa de estrangeiro, de hirto, de pouco natural, mas ao mesmo tempo... já não pode dissociar-se dela, da rapariga.

- Pois... E em mim... A verdade é que tu hoje entras em mim depois de Vermeer. Mas há qualquer coisa de inédito na minha visão de ti, que precisa ainda de ser descrito.


Tarkovsky, «Nostalghia» (1983)