IX - Exactidão



O que amávamos em Ibsen, eu e Maria do Mar, era aquele gosto pela denúncia do cretinismo burguês, pela exposição crua da hipocrisia, pela verdade. Toda essa mania comum de viver em prol de uma imagem ou de uma ideia de sucesso, toda essa arte de se pôr ao lado dos verdadeiros afectos, dos sentimentos genuínos, das emoções puras, das percepções nuas - amávamos a arte com que ele tecia essa denúncia. 

- Estou à espera de ouvir uma coisa a falar dentro de mim, para poder agarrá-la.

- Uma coisa?

- Não é uma voz. É um andamento. Por vezes, uma ou duas frases já feitas, já compostas, e agarrei a ponta do fio. A ponta de um fio muito débil, muito difícil de agarrar.

A arte da exactidão é a mais difícil de todas - pensava eu, em silêncio.

Como ser exacto consigo mesmo?

- Qualquer coisa que começa a falar. Não achas estranho que alguma coisa comece a falar, do nada?

A. escrevia os próprios sonhos, em busca desse rigor, dessa exactidão, dessa verdade, dessa percepção sem filtro. Quem é que ele tinha amado? Queria surpreender-se numa esquina, caídas todas as máscaras. A Maria do Mar dançava, enquanto a Francisca tocava piano e escrevia orações.

- Danço porque não posso falar com Deus, tu sabes.

Hoje estávamos a arrumar os armários.

- Não é realmente estranho que alguma coisa comece a falar, de moto próprio?

- Pode ser um simples mecanismo, um hábito da mente para se acompanhar a si mesma, uma ferramenta da vida, para se manter à tona. Se alguma coisa não falasse, o silêncio não seria insuportável? Tremendo?

- E isso não é exactamente a mesma coisa que pensar que a beleza é só um subterfúgio da espécie humana para suportar um mundo que é dolorosamente incompreensível, ininteligível?

- É parecido, de facto. E é porventura uma teoria muito pobre, muito triste.

- Se não conseguimos chegar ainda a uma percepção nua, exacta, absolutamente livre, se não conseguimos ainda sentir tudo o que há para sentir sem amortecedores, sem pará-quedas, sem máscaras, e se a lucidez é ainda um projecto, e não um estado, de que nos serve uma teoria?

- Sabes como olhas para mim?

- Penso em alguém que nunca mais vi todos os dias... E não sei sequer como olho para ti...

De um lado estava a roupa para lavar. 

Do outro, a roupa para arrumar.



Tarkovski, «Solaris», 1972