II - Tarkovski




«- Se eu pudesse, escrevia-lhe uma carta de amor. 

- A Tarkovski?

- Ajoelhava-me à sua frente e abraçava-lhe os joelhos - se eu pudesse - e se ele fosse vivo, escrevia-lhe uma carta de amor.

- Porque não escrever-lhe na mesma, apesar de estar morto?

- Sim. Porque não?... No «Sacrifício», lembras-te de como ele começa pela cena em que o pai conta ao filho a lenda de Ioann Kolov, que foi instruído pelo seu mestre, o monge Pamve, para subir uma montanha todos os dias e regar uma árvore morta que o mestre tinha plantado, e ao terceiro dia a árvore viveu?

- Lembro-me perfeitamente.

- Eu penso que tu és como Alexander neste filme, António. Tudo parece tão idílico. O pai e o rapaz, no meio daquela paisagem extraordinária, no meio daqueles campos tão suaves e tão planos à beira da água, onde as hastes do feno seco parece que dançam e murmuram, como uma extensa alma viva... Pois há esse plano em que se ouve apenas o som do vento a correr sobre o feno... Como é que Tarkovskki conseguiu fixar essa subtileza? Essa infinitude?... A partir desse momento ficamos deitados no chão, no meio do feno. Já não conseguimos sair mais do interior da película mágica. E a casa de madeira isolada à beira do mar e ao lado das árvores, com as cortinas ondulando para fora das janelas abertas... Como amamos esta casa, através da câmara de Tarkovski!... Os alpendres. As cadeiras de verga. As escadas. As ombreiras luminosas das altas janelas. As paredes. A composição dos quadros. A caminha de grades, no quarto do filho, ao lado da pequena cadeira, do espelho e da cómoda. Uma chávena de chá, sobre uma toalha branca, e, ao lado, uma maçã... Andamos por ali e como é agradável e fresca a casa isolada no meio do campo, à beira do mar... Cheira a madeira encerada e a vento suave. Pode-se ficar a ler e a pensar. Tudo é tão belo e tão calmo, são tão românticas as vestes da senhora e da sua filha, com tecidos e drapejados tão suaves e tão principescos que parecem chegados de outras eras, mas afinal, afinal nada é assim tão sereno e tão pouco obscuro, não é verdade? Sem querer, o pai faz jorrar o sangue na testa do filho, ao procurá-lo desesperado no meio das árvores. O Pequeno Homem está mudo e em convalescença de uma operação à garganta. Ele nunca fala. A jovem senhora, muito mais jovem que o seu marido, é tão fútil, meu Deus... E é adúltera, insensível, cruel, descompensada e levemente histérica. A sóbria criada ama mais o filho desta mãe do que ela própria. O médico, gentil e complacente, é o amante da jovem senhora e talvez da filha, enteada de Alexander, com o consentimento ou com a indiferença de ambos. À instável Adelaide, acalma-lhe as crises de nervos com morfina, ou com algum outro opiáceo. Contra a vontade da filha, insiste em drogá-la também, com uma injecção do mesmo veneno. Afinal, que idílio é este? Existe ainda a Maria, a criada de fora que tem um aspecto tão extravagante e infeliz. E como a detestável senhora é cruel com ela!... Meu Deus!... Otto, o carteiro nos tempos livres, dedica-se a coleccionar factos insólitos de que dá um único exemplo. É o daquela mãe que, antes da Segunda Guerra Mundial, decide tirar uma fotografia com o filho antes de ele partir para a frente de batalha. O filho morreu e ela nunca foi buscar a fotografia. Como é possível?... Mas passados muitos anos, vinte ou trinta anos, ela foi de novo tirar uma fotografia, e nessa nova fotografia apareceu o filho tal como estava na última fotografia antes de morrer, exactamente na mesma posição a seu lado e com os mesmos dezanove anos, e ela, já velha, com a idade actual. Não era uma montagem. Não era uma invenção. Otto comprovou cada facto, cada elemento da história, o que lhe deu imenso trabalho. Otto também detesta uma reprodução de Da Vinci que está pendurada numa parede, «A Adoração de Maria». Ele diz que se sente aterrorizado com essa pintura, que Da Vinci sempre o aterrorizou. E na verdade não se trata de uma adoração, a cena que está pintada, mas do retrato terrível da concupiscência sexual do homem pela mulher, esse poderoso dínamo da maldade humana, tão universal... Uma das cenas mais pungentes do filme é quando Alexander comenta em surdina as pinturas medievais ortodoxas de Andrei Rublev, num livro que lhe dão de presente de anos. «Tão sério, tão intenso, tão inocente.» - murmura Alexander, passando os dedos pelas magníficas reproduções. «Quase virginal.» E quando, à hora do jantar, rebenta a notícia de que deflagrou o início do primeiro conflito nuclear mundial, que irá certamente destruir o planeta, é Otto quem vem falar com Alexander. Já não há luz na casa. As telecomunicações estão cortadas. Alexander, que se considerava ateu, ajoelha-se e reza a Deus, pela humanidade, pela casa, pela família e pelo filho. Alexander pede a Deus que tudo fique como estava antes e Otto, a meio da noite, traz-lhe uma solução mágica. Ele precisa de se deitar com Maria, a criada infeliz e extravagante. Parece que ela é uma bruxa, «no bom sentido», e, se Alexander se deitar com ela, tudo voltará a ser como antes. Alexander (e nós conseguimos percebê-lo apenas pela expressão do seu rosto) sente-se enlouquecer. Hesita. Sofre. Por fim dirige-se à casa de Maria de bicicleta, com uma pistola no bolso. Maria levanta-se da cama, perplexa, e lava-lhe as mãos cheias de lama, pois Alexander tinha caído da bicicleta. Alexander toca Bach no pequeno órgão e conta a história do jardim da casa de sua mãe, cuja beleza só compreendeu tarde de mais. Ambos choram. Alexander cortou, serrou, escavou, arrancou e desbastou esse jardim para conseguir arranjá-lo, antes da mãe morrer. Só depois é que percebeu o que tinha feito com o jardim desarranjado e selvagem. Será que a mãe chegou a vê-lo, ao jardim arranjado, ou será que ela morreu com ele, com o jardim bem cortado e bem serrado? O velho Alexander pede a Maria que o ame, mas é recusado. Quando ela se volta, ele tem a pistola apontada à cabeça. Ou ela o ama, ou ele mata-se. E ela acede. Os dois corpos levitam sobre a cama, como que envoltos em feitiço, e, no dia seguinte, tudo volta a ser como sempre. Há electricidade. Estão vivas as comunicações. É de novo o dia de anos de Alexander. E então o que é que ele faz?... Mas tu sabes o que ele faz!... Deita fogo à casa. Impossível descrever esta cena. A casa arde. Arde realmente. A lindíssima casa de madeira à beira da água arde, com tudo lá dentro. A caminha de grades, o espelho, a escada em caracol... A casa arde e as chamas erguem-se ao alto e nós temos medo, mas tanto medo, temos um medo desumano e terrível de que o fogo se propague às árvores ou nos incendeie a nós que já ardemos por dentro do princípio ao fim do filme. Alexander é levado por uma ambulância para um hospital de loucos. Maria segue-o de bicicleta, mas não o alcança, e Tarkovski dedica este que é o seu último filme ao filho, «com fé e com esperança».

- Alexander sacrificou a casa.

- Não. Alexander sacrificou o jardim. Alexander sacrificou Maria.

- E tu sabes que, na primeira filmagem, a câmara encravou, provavelmente com o calor, Maria? Tarkovski insistiu em filmar com uma única câmara, à revelia dos conselhos e da vontade de Sven Nykvist, o co-produtor, e a câmara encravou. Tiveram de reconstruir a casa em apenas duas semanas e refazer a cena, desta vez com duas câmaras. As duas câmaras foram colocadas em carris que corriam paralelos um ao outro e a cena final é a da segunda câmara e dura seis minutos terminando abruptamente porque a câmara gastou uma bobina inteira. E toda a equipa rebentou em lágrimas quando percebeu que tinham conseguido concluir a filmagem.

- Eu sei. E tu sabes que és exactamente como o Alexander neste filme, António?»



Tarkovski, «O Sacrfício» (1986)