Maria do Mar



Passados muitos anos, ao fixar um desconhecido, a Maria do Mar lembrara-se de D., uma das suas paixões. O que é que vira nele? - perguntava-se. Tirando o álcool e a imaturidade, nada tinham em comum. Seria o corpo desengonçado e magricelas, com as pernas arqueadas, à Lucky Luke? Sempre gostara imenso do Lucky Luke, desde pequena. Mas havia por outro lado aquela velocidade um pouco impaciente com que ele se movia, com um excesso de energia, e que a provocava terrivelmente. Passados tantos anos, conseguia recordar com perfeição e nitidez os caracóis negros e rebeldes que lhe emolduravam o rosto, tão macios. E os olhos negros e pontiagudos que um dia a tinham fixado com gozo e acertado no fundo da alma. Mas porque será, porque será que alguns seres, raríssimos, e nem sequer os mais belos, nos surgem com esse feitiço de colocar em marcha a dança subterrânea e obscura do nosso desejo? O certo é que hoje, ao olhar para os dentes ligeiramente tortos de um desconhecido que faziam a sua boca tomar a forma de um suave bico (uma forma humorística, risonha), se lembrara de um modo involuntário de como essa composição de traços peculiares lhe acertara com a intensidade de um hieróglifo cujo significado não era menos que a totalidade da vida cósmica, não era menos, como dizê-lo, que a vida em pessoa, que assim a atingira como uma aparição fulgurante e que era o texto indecifrado de uma promessa consistente e precisa - a de uma máxima alegria.

«Podes vir ter comigo?» Dissera ele, já noite avançada. Tinha o carro avariado - e os pais não estavam em casa. Já não tinha idade para viver em casa dos pais. Era um imaturo, uma dessas pessoas que sofrem continuamente para crescer. Mas a Maria do Mar, disfarçando-se um pouco melhor, era igual. Tinha tirado a carta de condução apenas há dois dias, chovia como num dilúvio, não se via um palmo à frente do nariz, mas não se intimidou. Debaixo de uma borrasca tremenda, pôs-se a caminho, com o coração aos saltos. Mesmo com os pára-brisas no máximo, a água não saía do vidro frontal e jorrava como se o próprio céu estivesse a desabar. «Isto é que é ser atirada para a realidade, caramba, de um só golpe!...» Só que em vez de ir para a Ericeira, foi parar ao Cacém. Passadas quase três horas, quando finalmente chegou, feliz com as duas garrafas de Vodka que guardara no saco onde levava um pijama, o seu amante tinha adormecido. A Maria do Mar atirou pedrinhas à janela, que era no primeiro andar, mas nada. «Adormeceu tão bêbado que não acorda nem que rebente uma bomba à porta de casa.» Do outro lado da porta, a Bá, que era uma velha e boa labrador retriever, resfolegava, andando de um lado para o outro. A Maria do Mar experimentou todas as janelas que davam para o caminho de terra batida onde deixara o carro, mas nada. Então saltou o muro que dava para o jardim que forrava a parte de trás da casa, com o saco a tiracolo. Nem sequer podia sentar-se no chão e pôr-se a beber, pois poderia ter de pegar no carro para voltar... Nenhum consolo!... Suavemente, o céu ficara totalmente limpo e viam-se as estrelas uma por uma, a brilhar ao alto. E a terra molhada exalava um cheiro magnífico, inebriante. «Ah!... Que tristeza!...» Pensava a Maria do Mar. «Não é possível, meu Deus, que tanto esforço dê em nada!...» Na parte de trás da casa todas as janelas estavam igualmente fechadas e a Maria do Mar, sentindo-se como um gato a quem tivessem despejado um balde de água em cima, encostou-se à porta com o corpo inteiro, ao mesmo tempo que suspirava. Venturosa e inesperadamente, foi no mesmo segundo que se encontrou estatelada no chão, com o saco a tiracolo, porque a porta que estava apenas encostada se abrira com o seu peso. A velha e boa Bá lambia-lhe a cara e à sua frente estava uma antiga cómoda de pau santo com um enorme Cristo crucificado em cima, imponente e sofrido. Podia ser um Cristo, uma Nossa Senhora, um Buda, um Totem, um ovo da Páscoa, um dólmen ou um menir. Apesar de se considerar agnóstica, a Maria do Mar pôs-se de joelhos para agradecer àquele Deus a ventura inesperada de estar dentro de casa e trepou as escadas para o primeiro andar num ápice, felicíssima. «Olá.» Disse ela baixinho. «Estou aqui.» Mas ele dormia ferrado no alto do beliche que era uma cama realmente minúscula para dois e que tinha um estirador muito desarrumado em baixo. A Maria do Mar despiu-se, enfiou o pijama e bebeu alguns golos rápidos da garrafa de Vodka, até se sentir amolecer e relaxar, na onda de calor. Dispôs-se a trepar as escadas do beliche, quando lhe deu um ataque de riso. «Jovem rapariga morre alcoolizada ao cair das escadas do beliche do seu amante.» Com as mãos na boca riu-se ainda durante algum tempo sentada no chão, até conseguir trepar pelas escadas e enfiar-se na cama, depois de passar por cima do corpo dele. Adormeceu, meio dispersa entre a suave e morna dissipação do álcool que sentia a correr-lhe no sangue, o cheiro mágico que vinha daquele corpo desejado e a sensação nova que lhe dava a luz passando pelas frestas das portadas de madeira. No dia seguinte, ele acordou-a com um salto que quase o fez bater no tecto, ao descobri-la ali. «És um ninja?!...» A Maria do Mar não sabia muito bem o que fosse um ninja. «Daqueles que andam por cima dos telhados, com uma capa preta?» Pois nunca é muito boa ideia concordarmos com coisas acerca das quais não estamos muito certos, só para sermos agradáveis. A Maria do Mar porém não contou a sua aventura, nem como se tinha ajoelhado à frente do velho Cristo. Preferiu, como em tantas outras coisas, guardar segredo. Seria talvez uma excessiva declaração de amor, ou uma excessiva declaração de inocência, quem sabe? Assim, por timidez, mas mais ainda por orgulho, a Maria do Mar deixava-se estar à beira do mundo. Aliás, sempre à beira de qualquer coisa, como se num estado de promessa permanente. À beira da sinceridade, à beira da intimidade, à beira do amor, à beira da verdade... e acima de tudo, e de um modo pungente, para a Maria do Mar, à beira da morte - essa não-experiência.



Tarkovski (polaroid)