VI - Excesso de Deus



Chegávamos por um caminho de terra batida, no meio dos ciprestes.

Antes das escadas que davam para o terraço que bordava toda a fachada principal, uma pequena fonte de calcário, discreta e suave.

Concha sobre concha. A mais pequena sobre a maior.

No meio da fachada, com as quatro janelas altas de cada lado, a porta principal, que podia abrir-se de par em par. 

Do lado direito, a sala dos nenúfares.

Do lado esquerdo, a sala de jantar e a biblioteca.

Nas paredes, as pinturas sobre o estuque por restaurar estavam incompletas, mas o chão encerado, os amplos espaços vazios, as cortinas simples de linho branco e os poucos objectos reduzidos ao estritamente essencial traziam-nos uma imediata sensação de paz, uma quietude e uma alegria silenciosas, inexprimíveis.

A Francisca escreveu poemas para cada uma destas divisões.

Um poema para as pinturas incompletas da sala de jantar, outro para os nenúfares da sala dos nenúfares, outro para as estátuas arruinadas do terraço e outro ainda para a pequena fonte de calcário.

Ela e a Maria do Mar gostavam de ler em silêncio na sala dos nenúfares, recostadas nos velhos cadeirões de pele com os pés em cima de pufes e vestidas com roupas simples e confortáveis.

Eu quando por acaso chegava a casa no fim da tarde tinha uma vontade irreprimível de mergulhar o meu rosto nos seus cabelos e de as abraçar às duas, nessas roupas de vestir depois do banho.

Na parte de trás da casa, voltada a nascente, dispunham-se os nossos quartos.

A cozinha, em frente à sala de jantar. O meu quarto que partilhava frequentemente com A., e o quarto de Artur B., em frente à biblioteca. Logo ao lado a escada, em frente da entrada, e, contíguos, os quartos duplos da Maria do Mar e da Francisca, que comunicavam entre si.

Quem me dera que esta casa fosse eterna, que o tempo que ali passámos não passasse e que os perfumes, o cheiro das coisas limpas e da roupa lavada, o cheiro da terra molhada de manhã, o cheiro da fruta no pomar e da cera no chão, nunca morressem!

Cada parede era um gesto, cada plano uma composição.

Nesta casa, por causa da frugalidade (dançante) destes espaços, eu meditei longamente sobre a relação íntima entre a sensualidade e o ascetismo.  

Porque havia uma continuidade física entre a casa e a alma da Maria do Mar, se é que é possível dizê-lo assim, deste modo.

«Não é extraordinário que o mundo seja a cores?»

Disse-me um dia a Francisca, levantando os olhos do livro que estava a ler.

Teria o comentário alguma coisa a ver com livro? - Foi a questão imediata que me ocorreu e que me levou a procurar o título do volume que segurava nas mãos.

«Não seria já absolutamente extraordinário se o mundo fosse apenas preto e branco? Não seria já de cortar a respiração, tanta beleza?»

«E ainda por cima é a cores.»

Um dique contra o caos - era a casa. Cada objecto, cada gesto, cada cor escolhida, cada perfume - uma ilha no meio do caos.

Mas natureza da relação entre o conteúdo do Opus Postumum, de Kant, e esta mínima divagação sobre o excesso de graça em que consistem as cores acabou por ser o mote de um outro livro, ou melhor, de uma outra viagem.


Tarkovski, «Andrei Rublev» (1966)