«Quem viesse da estrada principal tinha de cortar à esquerda por um caminho de terra batida que deixava os pneus dos carros cobertos de um pó fino e branco, difícil de limpar.
Poderíamos imaginar-nos em Itália, nesse longo e estreito caminho ladeado de ciprestes que serpenteava por entre os campos outrora cultivados e onde ao fundo a velha casa de dois andares, longa, com as nove janelas altas dispostas lado a lado na clássica fachada sob comprido, constituía uma promessa.
Pintada de um amarelo já muito gasto, irreconhecível, toda a fachada se abria sobre o chão de um terraço numa tijoleira muito velha, coberta de um pó alaranjado que se colava aos pés.
No muro baixo desse terraço é que se erguiam a intervalos regulares as esculturas arruinadas em calcário sobre as quais a Francisca escrevera um poema em «A um Deus Desconhecido», algures entre 1986 e 1989, e, no andar de cima, metade dos quartos não tinha tecto, porque o telhado ruíra. "Prefiro ver o céu através do telhado." Respondia a Maria do Mar quando lhe falavam em restaurar o telhado.
O mundo não fazia qualquer sentido para a Maria do Mar. Era um mundo absolutamente non-sense, um teatro o mais louco possível.
O mundo da produção, dos objectivos e das metas a alcançar, o mundo do dinheiro, das massas, do prestígio e da captura de todo o desejo pela medida de uma só e mesma bitola, esse mundo era opaco e totalmente ilegível para a Maria do Mar.
Na sala de jantar onde comíamos todos os dias, por exemplo, o desejo e a alegria da Maria do Mar consubstanciavam-se em ver aquela rosa branca dentro de uma velha jarra azul, já sem valor (porque as quedas esporádicas ao longo de tantos anos tinham estragado uma parte do discreto trabalho oriental em cloisonné), contra uma parede que estava pintada de vermelho escuro.
E que o móvel em cima do qual elas estivessem, a rosa branca e a jarra azul, fosse tão antigo que a própria madeira estalada perfizesse a ladaínha surda do tempo contra a morte e que não houvesse ali mais nada, naquela parede e em cima daquele móvel, absolutamente mais nada sem ser o vazio que deixasse falar o vermelho, o azul e a rosa.
Mas "falar" talvez seja uma má metáfora. O que o vazio permitia era que a intensidade da ressonância entre os espaços e as cores (entre as áreas de cor) vibrasse livremente, sem obstáculos, e esta ressonância ía e vinha, como uma dança.
Claro que eu, António Pizarro, podia compreender a Maria do Mar e as suas discretas composições de cor e vazio que habitavam tão subtil e elegantemente aquela casa. Não a compreendia, porém, na incoerência que a impedia de vender todas as propriedades arruinadas e de fazer qualquer coisa mais útil e altruísta com o dinheiro.
"Que sabes tu sobre o que é melhor?... Sobre o mundo?... Não sabes que tu serias exactamente como Alexander naquele filme de Tarkovski, «O Sacrifício»?... Deitarias fogo à tua própria casa depois de tudo teres feito para a salvar, depois de teres sacrificado a própria Maria. E sabes porquê? Porque perceberias de repente que estava tudo errado, que as tuas ideias estavam todas erradas."
Este tinha sido um dos nossos maiores desacordos, a propósito de um filme de Tarkovski, e era difícil suportar a Maria do Mar naqueles raros momentos de profunda arrogância. Mas embora não a compreendesse em tantos aspectos, podia compreendê-la na paz e na alegria que ela sabia compor a partir das pequenas coisas e acima de tudo com planos vazios, interrompidos, e nas sinfonias de cor com que entrelaçava os afectos subtis e abstractos que me atingiam como corpos, como abraços, e que me provocavam uma tal felicidade, que me traziam uma tão grande paz.
Talvez por isso eu pensasse tanto na Maria do Mar enquanto traçava os planos para o meu futuro livro - «O Elogio da Frugalidade».
E talvez por isso a memória desta casa, mesmo depois da trágica morte da Maria do Mar e de todo o espanto e sofrimento que nos causou, não parasse de me assombrar e fascinar, tal como todos esses movimentos perpétuos que obscuramente nos hipnotizam; como os dias e as noites ao longo das nossas vidas; ou como o nosso rosto no espelho, sempre repetido e novo.»
Havia ainda, nessa grande casa
em que vivíamos, eu e Maria do Mar,
uma outra sala, geminada com a
primeira,
em frente do terraço, com essas
altas portas
envidraçadas que se abriam sobre os
campos.
Chamávamos-lhe «Sala dos
Nenúfares»,
por causa dessa curiosa pintura
circular
que um certo bisavô, porventura
excêntrico,
decidira fazer ao longo das
paredes,
ocupando-as na totalidade, de tal
forma
que os únicos móveis ali expostos,
no centro da sala, deixando livre
tudo em volta,
eram dois velhos sofás e uns
cadeirões de pele,
já muito gastos e estragados, e
inclinados,
e uma cadeira de baloiço, em
palhinha, sobre um tapete,
e nada mais, porque a intensidade
dessa pintura
enchia todo o espaço de uma
excessiva presença.
Tínhamos o hábito de ler, aí, nessa
sala,
rodeadas por esse verde meio opaco
que era o das águas paradas de um
lago,
aqui e ali, coberto de nenúfares,
essas flores aquáticas que com
suave brancura
delicadamente iluminavam a
penumbra,
e era tão bom e tão suave esse
contraste entre o verde
das águas e o verde das folhas dos
nenúfares
quase em forma de coração, sobre
elas poisadas,
e era tão bom esse outro rosa das
pequenas flores
que caíam, em cascata, das
trepadeiras que se erguiam,
ao longo das paredes, enquanto
líamos as duas,
em silêncio, confortavelmente
estendidas nos sofás.
Do terraço vinha essa suave luminosidade
que nos libertava, e ao longe,
sobre as amuradas,
podíamos ver essas brancas figuras
humanas
que alguém esculpira em calcário,
agora incompletas, arruinadas pelos
anos
que sucessivamente tinham passado,
sem que houvesse um trabalho de
restauro.
Numa faltava uma cabeça, noutra um
braço,
noutra ainda uma mão, ou um pé,
mas a delicadeza dos suaves
drapejados,
modelando os corpos, não se tinha
perdido,
nem se perdera essa silenciosa
majestade,
essa comovente dignidade da vida
que se ergue,
tão frágil, e tão desafiante, no
meio do movimento
da matéria que parece um turbilhão,
e nessa altura,
enquanto líamos, essas figuras
humanas sobre os muros
do que nos falavam era precisamente
desta
estranha e curiosa dupla condição
que é uma linha de tensão que persiste
entre erguer-se e estar arruinado.
in Francisca M., A um Deus Desconhecido, Poema XXVI
Tarkovski, O Espelho (1975) |