XXI - Nenúfares



 
Mal ou bem, eu e a Maria do Mar sobre o que mais falávamos era de Deus.
 
Talvez porque achasse que a Maria caminhava em linha recta para o desastre, copo atrás de copo, garrafa atrás de garrafa, e pensasse, ou intuísse, que a causa também poderia ser aquela terrível ideia de Deus, ou melhor, aquele vazio de uma ideia de Deus que ao longo de tantos anos a Maria do Mar fora formando, ponto por ponto, degrau a degrau.
 
Nesse dia o que mais me doía, porém, na grande e velha, quase arruinada, sala de estar, eram as saudades de F. de Riverday e a nossa tremenda impotência para a salvar.
 
Embalava-me um pouco na velha cadeira de baloiço, que rangia suavemente, elegantíssima, toda feita em palhinha entrançada, manufacturada com uma técnica que hoje pouco ou nada se domina. A meu lado faziam-me companhia um bule e uma chávena de chá, brancos e azuis, em cima de uma mesa pé de galo. E pensava na F. de Riverday que também gostava de se embalar aqui, há tantos anos atrás, ao lado desta mesma chávena de chá e deste mesmo bule branco e azul, poisados sobre esta mesma mesa pé de galo.
 
A dor tem por vezes contornos súbitos, agudos e insuportáveis. O que nos vale é a nossa memória ser tão tosca e tão esbatida e nos surgir sempre na alma em ínfimas doses e raramente. E o que nos vale ainda mais é a nossa inteligência e os nossos sentidos serem tão pobres e tão limitados, pois de outro modo teríamos de chorar e gemer o dia inteiro e talvez nem tivéssemos forças para nos erguer do leito.
 
Ali estava eu, pois, dando graças porque a viva memória de F. de Riverday era tão fortuita e tão passageira que até já podia pensar noutra coisa, sentir alívio com o calor do chá e preocupar-me com a Maria do Mar que estava deitada no velho sofá, como numa chaise-longue, com o seu copo de vodka com limão e um livro de Kant na mão.
 
O que era mais admirável nesta sala antiga e intocada, tão maravilhosamente parada no tempo, tão falha de modernidade, reparações e renovação, eram os nenúfares que o avô de Maria do Mar pintara, porventura inspirado em Monet, em todas as paredes, do chão até ao tecto.

Por isso não havia mais nada, além do sofá, da cadeira de palhinha e das duas mesas redondas pé de galo. Nem um tapete sobre as tábuas enceradas e corridas, nem uma estante, nem uma fotografia. Nem as amplas portas envidraçadas que davam para o terraço de tijoleira muito gasta tinham cortinas.

Dois candeeiros de pé para ler, era tudo o que bastava nesta sala.
 
Talvez por isto fosse tão fácil adormecer ali, no meio do verde escuro das águas e do branco esbatido dos nenúfares.