XI - Um Deus com olhos



- Danças, se não podes falar com Deus?

- Não concordas que é uma boa alternativa?

A Maria do Mar lavava a loiça em água quente, enquanto eu cortava o feijão verde que tínhamos acabado de colher na horta.

Tanto o som da água quente a correr como o perfume do feijão verde cortado nos davam uma sensação de paz, de abundância, de plenitude, de eternidade.

- É evidente que não estás a dançar para nós. Não estás a dançar para ninguém, aliás. Mas acreditas que Deus te vê quando danças, Maria?

- Se Deus me vê!... - exclama ela com um riso claro e solto, ao mesmo tempo que se volta para trás esquecendo-se da loiça, da água corrente, da espuma, de tudo.

- Como és humano, António!

- Estou apenas a fazer um paralelo, Maria. Se os que falam acreditam que são ouvidos, porque é que os que dançam não acreditam que são vistos?

- Há mais coisas na minha alma do que aquelas que cabem na tua imaginação, meu querido amigo...

- Então?...

Estávamos ali entre os azulejinhos brilhantes da grande cozinha, os azulejos pequenos, azuis e brancos, e nós, as duas incógnitas, as duas figuras ténues no fundo quadriculado, ardente e brilhante.

- Não posso dizê-lo... Se Deus me vê... Que humano que é ver!... Um Deus com olhos, um Deus todo olhos, quem sabe?... Olhos por todo o lado, até por baixo dos pés!... Mas agora este Deus também tem pés!... Tem costas, tem frente e trás!... E talvez uma barriga, um sexo e um cu... Ou vários sexos... Quantos dedos? Quantas mãos? Quantas bocas? Quantos cérebros? Quantas espinhas no centro dos mil corpos?... Que cabelos por todo o lado, como florestas, como estepes cobertas de tojo, de cactos e de flores? Que caudas de leão, que asas, que bicos de águias? Que olhos penetrantes de coruja demasiado perspicaz e supra-humana? Queres que enlouqueça aqui mesmo, só de imaginar um Deus que vê?

- Maria do Mar, acho melhor concentrares-te na loiça, enquanto eu acabo o feijão verde...

- De qualquer modo... - continuou a Maria, colocando as mãos na água - ...talvez seja absurdo, porque não imagino nada... - não sou capaz... - mas é para Ele que eu danço.




Hermes derrubando Argos Panoptes, século V a.C.