Pela irrelevância dos títulos - II



- Por exemplo, Rei Lear. O título é: Rei Lear. E depois: Rei Lear, Rei Lear, Rei Lear. O título deveria ser Sal e Pimenta.

- O que não seria nada irrelevante.

- Ou Madame Bovary. Título - Madame Bovary. E depois - Madame Bovary, Madame Bovary, Madame Bovary. Vá lá que Flaubert apareceu a dizer que a Madame Bovary era ele. Pelo menos não seria um machista tão insuportável como o Eça de Queirós. Ou, Crítica da Razão Pura. Razão Pura, Razão Pura, Razão Pura. Capitalismo e Esquizofrenia. Capitalismo, capitalismo, capitalismo. Esquizofrenia, esquizofrenia, esquizofrenia. Socorro!

- Não incomodes os pássaros. Eles espantam-se com exclamações.

- A Ética de Espinoza. Melhor, porque a relação entre uma substância eterna e infinita composta de infinitos atributos e o modo como daí decorre que devemos agir nos obriga a pensar. Mas um título mais picante seria A Mecânica Afectiva das Fantasias.

- Não totalmente irrelevante. 

- Ou, para Madame Bovary - A Importância de passear o seu Cão. Ou, para a Crítica da Razão Pura - Justine, de acordo com Orlando I. Ou, para Capitalismo e Esquizofrenia - Proposta de uma Anti-Lógica do Desejo.

- Não consegues. Não consegues nenhum título irrelevante. Quanto mais te afastas do tema mais revelas como pensa o teu inconsciente. Uma espécie de nudez involuntária. Aliás - Nudez Involuntária. Belo título...

- Esqueces-te das tuas ervas daninhas? Já limpaste toda a zona dos alhos franceses?

Deitada sobre as pedras quentes ao sol, a Maria do Mar enrolava nos dedos as pontas dos seus cabelos dourados, de olhos semi-cerrados.

- Maria do Mar, não serve como manifesto, mas dava um belo jogo. Acho que consigo um título totalmente irrelevante. Rolls Royce, para Em Busca do Tempo Perdido.

- Porque Proust comprou um Rolls Royce ao Albert, que era no livro a Albertine? Mau disfarce. Já não é completamente irrelevante, ou pelo menos não tão irrisório como gostarias.

- E além disso o meu inconsciente deve estar a trabalhar de uma forma que só é invisível para mim porque sou o autor imediato da pretendida irrelevância!

- Não me lixes com o inconsciente, António. Se for consciente deixou de ser inconsciente, ponto.

- É um território sempre possível de alargar, o único plano realmente infinito, para além do infinito em si, do infinito propriamente matemático. Inconsciente para o próprio, mas não para os outros, leitores, ou simples testemunhas que sejam. Como no exemplo clássico de Freud, quando fazem aquela hilariante experiência com recurso à hipnose. Disseram ao desgraçado que quando acordasse ia buscar um guarda-chuva e ia abri-lo mesmo no interior da casa, onde não haveria perigo de cair nem uma única gota de água. E ele lá foi, mal acordou, buscar o guarda-chuva e abri-lo criteriosamente no interior da casa, ficando admiradíssimo quando lhe chamaram a atenção para o absurdo do que fazia. «Já reparou que não está a chover?... Olhe, estamos dentro de casa. O que é que você está aqui a fazer, com um guarda-chuva aberto, dentro de casa?...» Não se faz... não se faz... Ou então, por exemplo, inconsciente num tempo, mas não num outro tempo. Como quando descobres o significado de um sonho que escreveste há muitos anos atrás. O pensamento inconsciente deixa pistas, como um buraco negro.

- Assustador, porque não somos donos de nada. Além disso, impreciso. Podes interpretar quase infinitamente um mesmo sonho, tantas vezes e exactamente ao mesmo ritmo daquelas interpretações que se produzem cada vez que muda a tua perspectiva sobre a vida. 

- E porque haveríamos de ser donos de alguma coisa?... Estou cansado, Maria do Mar. Com este sol, estou realmente cansado. Apetecia-me comer pão-de-ló com chantilly e morangos.

- Temos tudo. Ovos, farinha, açúcar, natas, morangos. Podes fazê-lo em trinta minutos.

- E as natas estão frias?

- Com o gerador, já temos frigorífico.

- O solar cai aos bocados, mas pelo menos há um frigorífico!...

- Para quê restaurar a casa, se em breve estaremos mortos? Vão-se as pessoas, ficam as casas.

- Não pensas nas gerações vindouras, Maria do Mar?

- Ninguém devia ser herdeiro de nada, a título particular. A mim esta herança consome-me como uma gangrena. Vai-me matar. É um membro morto que arrasto e que nem sequer tenho a coragem de amputar.

- Ovos, farinha, açúcar, natas, morangos... Meu Deus... Que excesso de abundância.