XV - Nostalghia




- O que é que é mais impressionante em «Nostalghia»?

- Talvez os cabelos de Domiziana Giordano.

- Ah!... Esses cabelos!...

- São a quinta-essência da volúpia. Ou a volúpia em si.

- Fazem-nos pensar na Vénus de Boticelli, naquelas espirais louras que são como torres de um outro reino, circundadas por escadarias que nos levassem ao céu, mas porquê?

- Sim, também te pergunto, Maria - porquê? É realmente estranho que te lembres de Boticelli. Boticelli não tem nada dessa textura. Não tem nada dessa específica suavidade. Verdadeiramente equivalente, que me lembre, só os pinheiros mansos dos climas meridionais, num dia de Primavera.

- A memória é estranha. Cheia de alçapões, de bifurcações. Mas não concordo com a tua ideia de suavidade. Boticelli é isso mesmo, um mestre da suavidade. As combinações de cores, a mistura entre o ouro e o azul, primam por uma suavidade inigualável. Suave, mas sem perder a força. Deve ser esse o nó da minha associação involuntária.

- É possível, sim. Vendo bem, é possível... Mas outra coisa impressionante é a água e a humidade que se infiltram por todo o lado. A neblina. O nevoeiro. Os vapores que se levantam da piscina de Santa Catarina, onde se banham os turistas. A casa onde vive Domenico, o louco, e onde chove por todo o lado. Faz lembrar o segundo andar desta casa.

- Que exagero!...

- O mais impressionante é a auto-imolação de Domenico, quando pega fogo a si próprio, no topo do cavalo de bronze, no meio da praça.

- Não concordo. O mais impressionante é a indiferença das pessoas que estão a ver a auto-imolação de Domenico - e a angústia do cão que está preso por uma trela a um poste, e não consegue soltar-se.

- Indiferença... ou estupor... mas é verdade... Essa cena é insuportável... Ao vivo é uma cena impossível de suportar. Passei metade do tempo de olhos fechados. Só a vi por relâmpagos... porque os sons me entravam nos ouvidos... não podia escapar.

- Estou a pensar, António... Não é tão estranho que a nossa memória esteja cheia de erros, de armadilhas, de ilusões e de certezas que mostram mais o mapa da nossa alma que o da realidade?... Quando Domenico grita, no alto do cavalo de bronze: «Onde estou, se não estou, nem no meu corpo, nem na minha cabeça?...» - achei que era uma frase de Fernando Pessoa. Mas será que a frase é mesmo assim, como me lembro dela agora?... Quando chegámos ao fim do filme e observei que Tarkovski o tinha dedicado à mãe, lembrei-me de uma outra frase de Domenico que primava pela vividez do movimento e pela percepção fina, liberta, quase infantil. «Mãe, quando tu ris o ar fica mais ligeiro em roda da tua testa e parece que à volta tudo aclara.» Não deve ser exactamente isto, também... Mas o meu amigo, com quem então vi este filme, não reparara na frase e voltou atrás para poder ouvi-la. Eu sabia precisamente onde ela estava, a frase lindíssima, a pura, cândida, inesperada e fortíssima declaração de amor. Antes de Domenico acender o isqueiro. E o mais curioso de tudo é que  pensava estar a ler as legendas sem ligar assim tanto ao italiano, que é uma língua que nem conheço... mas, pelo contrário, o que é que tinha acontecido?... Nas legendas vinha «o ar fica mais leve» e «em torno da tua cabeça», enquanto a minha memória tinha agarrado no italiano o «leggero» e a «testa» que logo transpôs para o português e que são palavras tão vivas, tão puras e mais: tão sonoramente expressivas. «Leggero»!... «Testa»!... Nem sabemos o que vemos, nem o que ouvimos, António. O mundo passa por nós numa torrente tão veloz, tão infinitesimal, tão infinita... e estamos mergulhados na realidade como um grande iceberg que atravesse a terra deslizando em incógnitos mares gelados, absurdo e inerte. A maior parte de nós e de tudo, nem a sabemos, mas até a fixamos, por vezes, até a transpomos, transmudamos... Não é assustador?... Uma parte do que percebemos, não chegamos sequer a senti-la... E lembramo-nos de coisas em que não chegámos a reparar...

- O pensamento anda mais rápido do que as nossas ideias... A percepção é muito mais rápida do que o raciocínio... Como os nossos raciocínios são lentos!... O que sentimos é mais veloz do que a luz, e tão micro-matizado como ela. Ondeia atrás da nossa alma como uma cauda de noiva, que a alma arrasta mas não vê. Se ouves o som do mar, esse som imenso, amplo, deve ser porque guardas ou apanhas em ti todos os micro-elementos de tantas ondas, tantas gotas, tantos ínfimos fios de água. Mas como? É um mistério.

- Quanto à frase de Pessoa, eu sabia que tinha lido essa frase algures, sabia que essa frase era uma citação, que não tinha nascido naquele filme e além disso sabia o quanto em tempos ela me impressionara. Para mim essa frase vinha com aspas. Mas troquei quase tudo, António... A frase não era de Fernando Pessoa. Procurei-a durante horas, e, por fim, como não a encontrava, lembrei-me de um pequeno livro de capa amarela sobre esquizofrenia e psicose, que tinha lido há já vários anos. Assim, do nada, apareceu-me no pensamento a imagem do pequeno livro, sem título nem autor, mas que de repente eu sabia ser o portador da pequena frase e cujo lugar na estante me lembrava com precisão. Fui buscá-lo. Intitula-se «L'homme e sa psychose» e é de Gisela Pankow, uma neuro-psiquiatra e uma psicanalista francesa de origem alemã, que morreu em 1998.

- Tarkovski e Tonino Guerra tinham andado a ler a Gisela Pankow?

- O livro é de 1969, o filme é de 1983. Mas não achas que seria também natural terem andado a ler Fernando Pessoa?... Pankow liga a esquizofrenia e a psicose a uma perturbação na relação com o corpo habitado, o corpo vivido. Mas ela começa por identificar a possibilidade de abandonar o corpo próprio como uma força, como uma vantagem, como uma arma de sobrevivência. É o caso de Cayrol, um prisioneiro de um campo de concentração que descreve nos seus escritos que, quando era chicoteado, já não estava no seu corpo - estava na velha macieira do seu jardim... Literalmente. Para Pankow, a diferença entre a saúde e a insanidade está só na possibilidade de regresso. Regresso ao corpo vivido. Ela chama, a esta capacidade de abandonar o corpo próprio para se refugiar noutras maneiras de ser, «fenómeno do corpo perdido». Ora, o que é realmente notável é como, mais do que interpretar (de uma maneira selvagem), ela observa. Mais do que perceber causas e significados, ela descreve com minúcia, com atenção, diria mesmo, com profunda empatia, e, se é que é possível falar destes valores sem a patine de hipocrisia social que entretanto se lhes foi colando, compaixão, solidariedade, humanidade. O livro de Pankow está cheio de fragmentos de discursos verdadeiros, e esta frase é de Verónica, uma rapariga de vinte anos, toda muito miudinha, inquieta, com um olhar fixo e distante. Então começo a ler e descubro que há muito mais frases de Verónica, no discurso de Domenico. O discurso de Domenico, no topo do cavalo de bronze, está todo salpicado de frases de Verónica. E porquê? É certo que devo estar a lembrar-me com muitas falhas. Parece que, sem querer, misturei tudo. Verónica pergunta: «Onde é que estou, já que não estou, nem na minha imaginação, nem na realidade?» «Onde é que estou então?» «Na angústia?» E afirma, a dado ponto: «Não posso viver ao mesmo tempo na minha cabeça e no meu corpo.» António, é verdade, os discursos de Verónica, gravados palavra a palavra pela Gisela Pankow, são impressionantes. Há qualquer coisa neles que transcende tudo e que se mantém para lá da cena psicanalítica, com uma força intacta, tremenda, uma força universal, ainda por compreender e abordar.

- E, tanto quanto tu, parece que Tarkovski e Tonino Guerra foram atingidos pelas palavras de Verónica.

- Parece.


Tarkovski, «Nostalghia» (1983)