XIV - Da arte para a vida, e vice-versa




Não há nada como estar na cozinha a fazer compotas, bolos, ou pão. E principalmente nesta cozinha antiga de paredes quadriculadas em branco e azul, chão de mármore, altas portas de vidro sobre o pomar e a horta e cujos móveis de madeira a Maria do Mar pintou e restaurou. Páro durante longos segundos. Penso como se fosse uma câmara de filmar. Acho que eu, António Pizarro, não sou mais do que uma câmara de filmar!... A Maria do Mar haveria logo de perguntar-me o que era isso, que coisa era essa, e eu dir-lhe-ia: «Recortar, olhar com moldura, ver como num plano.» Ah!... Mas isso é sempre!... Diria ela. Recortamos sempre. Vemos sempre com uma moldura. Olhamos sempre como num plano. Mas não. Nada disso, diria eu. Isso é só uma primeira impressão. Na verdade, uma milésima impressão. É um hábito de ter visto demasiado cinema. Para cortar o mundo é preciso parar, estacar, suster a respiração, travar o ritmo com que bate o coração e escolher o trilho por onde segue o olhar. Não virar a cabeça, não rolar os olhos, quase não mexer as pernas (ou melhor, não deixar que nenhuma extremidade da alma se agite, como a cauda de um peixe, por dentro da nossa atenção) e, principalmente, não deixar que o infinito nos flua pelas pontas dos cabelos, como acontece habitualmente. Ao contrário dos planos, das molduras, das visões limitadas, nós os vivos estamos sempre a meio do diáfano - e o infinito enreda-nos de mil modos. As estrelas e os abismos dos céus não polvilham apenas os nossos sonhos e a nossa imaginação. A toda a hora se debruçam sobre as nossas cabeças e corropiam debaixo dos nossos pés. Para limitar é preciso uma máquina. E com a crueldade, a força e a precisão da máquina isolar; extrair; abstrair. Assim eu focava o quadriculado dos azulejos com um plano imóvel do meu pensamento, uma esquadria rigorosa, extraindo deles só aquele brilho acetinado que resultava de estarem tão limpos e, para além de lavados, polidos com um pano seco. Nesse plano a Maria do Mar nem se movia já, com o seu avental branco, tão estranho que era, demasiado limpo. Ela detestava roupa suja, nódoas, panos manchados. Ficara de lado com um grande pedaço de abóbora na mão esquerda e uma faca na mão direita, manchada de laranja. A Maria do Mar contra o quadriculado branco e azul, semi de lado, meio de costas; e tinha uma saia larga, comprida, de linho branco, uma camisa de tule, larga e vaporosa, um pouco transparente, de mangas dobradas, arregaçadas, e os pés descalços, que se viam sob a baínha. Inclinado, o rosto escondia-se atrás dos seus cabelos e, por mais que ela cirandasse, para cá e para lá, era assim que eu a fixava. Entre o brilho de um Vermeer e o inédito de um pintor por descobrir, entre o abstracto dos azulejos e o concreto de um legume. E enquanto ela pesava o açúcar amarelo, cujo perfume adocicado e inconfundível se espalhava no ar, eu partia as nozes em cima da mesa e que depois seriam misturadas no doce de abóbora. Que luxúria comer depois este doce com um requeijão do Senhor Chico!... Que manjar dos deuses!...

- Por exemplo, tens uma maçã de Cézanne, e passas para aquela maçã, que agora consegues ver melhor, depois de ter visto a maçã de Cézanne. Sem Cézanne, a maçã passava-te ao lado.

E a Maria do Mar apontava para uma maçã que ficara sobre a pedra da bancada.

- E há-de haver alguém que verá a maçã como nem Cézanne nem ninguém ainda viram, e por isso essa outra maçã continua a passar-nos ao lado, apesar de estar lá, certo?

- Ou as estrelas de Van Gogh.

- E as outras estrelas - as estrelas que ainda não encontraram o seu pintor.

- Cézanne descobriu que não há verdadeiras fronteiras entre os corpos, que todas as linhas são infinitesimalmente porosas, abertas, entretecidas e sobrepostas umas às outras, em sucessões de transparências, e que todas as superfícies são como gazes, esburacadas. O que é um facto da matéria.

- É verdade.

- Como é que vês a sombra de uma luz na parede vermelha da sala, um quadrado de sol brilhando no soalho, dividido entre o chão e o tapete, depois de Rothko? A toda a hora descobres as sinfonias que se fazem nas fronteiras entre duas bandas de cor. A toda hora esbarras com encontros que são como a fundamental e a terceira e a quinta e a sétima de um acorde, diferentemente matizados, e para um mesmo som, quantos voos em direcções distintas!...

- De facto...

- Depois de Mondrian, depois de Miró, guias um carro numa estrada e vês quadradinhos e círculos a dançar por todo o lado, e à noite, vês tantos pontinhos flutuantes que, mesmo que sigas em frente muito triste, de regresso a casa, já só consegues sorrir...

- Isso depende da bondade do condutor, Maria do Mar.

- E assim passas de um quadro para a vida, e da vida para um quadro, e a toda hora, de um modo involuntário, inevitável, tropeças em ambos, nos quadros e na vida, de certo modo, linearmente.

- De certo modo. Porque, em parte, a vida não se mostra antes que alguém a veja.

- Ai!... Esse «em parte» salva-te de tudo, António!... Ou num poema. Passas de um poema para a vida, e da vida para o poema... Porque muito do que aí se passa se vê como num quadro, ou como num filme. Como a pintura, a poesia, já dizia Horácio, e tão bem. E parecem trechos do mundo que desfilam a toda a hora, os versos.

- É mais complicado, Maria do Mar. Se for um poema em kikongo-kituba será para mim o mesmo que andar numa estepe de olhos vendados. Não verei nada. E sou um homem. Quer dizer... sou humano...

- Mas se for um poema em kikongo-kituba dito em voz alta hás-de saber, mesmo sem perceber uma palavra dessa língua totalmente estranha, qual a hora do dia em que se encontra a alma do poeta, e já começarás a ver alguma coisa. Porque se o andamento for rápido e a timbre da voz for transparente, alegre, esperançado, será sempre de manhã. Mas a velocidade cairá com o andar das horas e do entardecer para a noite passarás de um andante para um adagio e, já noite avançada, para um largo. Cada velocidade terá uma cor, uma hora do dia ou da noite, um peso, uma matéria. Não há como escapar.

- Cada língua tem as suas melodias, as suas cadências, os seus ritmos prosódicos, os seus intervalos predilectos, as suas velocidades e os seus timbres aos quais cada tribo atribui, cada uma a seu modo, uma diferente subtileza. Como estrangeiro não passarás de um humano a farejar o trilho de um cão. Dessa miríade de cheiros diferentes e plurifacetados que para ele talvez sejam como ler um romance de Kafka, ou receber as últimas notícias de por onde andou a sua amada, ficarás com apenas um sinal - o entusiasmo do cão. O faro não é coisa de humanos.

- Não vamos discutir, pois é tão óbvio. Só estou a temperar o teu exagero com um pouco de bom-senso, porque não é verdade que algum dia pudesses estar diante de um poema como um vagabundo deambulando numa estepe, de olhos vendados.

- Já estás a acrescentar... e contradizes-te, Maria do Mar. Comparas a poesia à pintura, quando afinal do que estás a falar é de música!

- Ah! Sim! Pois claro!

- Pois claro?!

- Mas que chatice!... Estar sempre de acordo consigo próprio!... Pois não é evidente que a poesia está a meio caminho entre as duas coisas, entre a música e a pintura?... Só que a música não se encontra em lado algum, no mundo, a não ser no corpo - e nas almas dos homens. Talvez seja o corpo que se vira no avesso, e assim nós trazemos para o mundo a sensação esculpida no som, inserida no real, feita coisa. É que a música não imita mesmo coisa nenhuma que esteja cá fora. Mas traz-te a alma inteira à vista até com aquilo que não sabes ainda nem pensar nem nomear.

- E portanto só podemos concluir que o Horácio falou de um modo muito tosco, muito incompleto.

- Como a nossa conversa é absurda, António!... Não chegamos a lado nenhum!...

- É só uma maneira de ir partindo nozes, Maria.

- É que aquela neblina ali ao fundo, António, aquela neblina mágica que envolve hoje o pomar e que parece que sobe da terra, como se a terra respirasse, essa neblina hoje passa por mim mas através de Tarkovski... e passa por mim cambaleando e ardendo e aperta-me o coração com uma tal nostalgia, uma tal mágoa... Porque há sempre um excesso de álcool em Tarkovski, um desequilíbrio, um passeio de bêbado pela franja dos precipícios, à beira dos abismos, uma dilaceração entre a fé e o vazio, entre a esperança e o absurdo, entre a beleza e a loucura, e hoje a neblina enfeita-me a alma como a uma antiga rapariga holandesa uma touca engomada pudesse coroar a cabeça... Tem qualquer coisa de estrangeiro, de hirto, de pouco natural, mas ao mesmo tempo... já não pode dissociar-se dela, da rapariga.

- Pois... E em mim... A verdade é que tu hoje entras em mim depois de Vermeer. Mas há qualquer coisa de inédito na minha visão de ti, que precisa ainda de ser descrito.


Tarkovsky, «Nostalghia» (1983)